Ao vencedor, as batatas

Academia Brasileira de Letras/Divulgação

O Adamastor me chegou indignado, outro dia, com o que leu no Quincas Borba. Mas como, vociferava ele, um escritor, reputado como o maior entre os escritores brasileiros, teve o cinismo de escrever uma coisa dessas!

Perguntei assustado a causa da gritaria e meu amigo confessou que estava lendo um livro de Machado de Assis. Quando meu amigo lê, já sei que vou ter problemas. A formação do Adamastor, o gigante, apesar de ter nascido de Os Lusíadas, não me parece muito forte em literatura. Ele tremia de puro furor.

Quincas Borba é uma personagem irônica, expliquei, figura comum na literatura de Machado. Aproveitei para uma pequena introdução à leitura do texto literário. Não se deve ler literatura ao pé da letra. Os sentidos estão quase sempre escondidos nos escaninhos do discurso. Ambiguidades, ironias, eufemismos e tantos outros recursos de retórica fazem parte do que há de lúdico na literatura, ou seja, participam de sua literariedade. Não se pode tomar o símbolo pela coisa simbolizada sem entender-lhes as relações.

E por aí fui falando, tentando reproduzir o que o Aristóteles já dizia há mais de 2 mil anos, como aquilo de que o historiador está preso a fatos reais, ao mundo existente, enquanto o escritor tem o direito de inventar o mundo, como ele gostaria ou detestaria que fosse. Demiurgicamente ele recria o mundo. E outras coisas mais. A leitura da literatura requer certa iniciação para que seja uma leitura adequada.

O Adamastor ainda me olhava desconfiado, sem se conformar com minha interpretação para a frase que utilizei como título desta crônica. Comigo é pão pão, queijo queijo, ele afirmava, sem perceber que não estava entendendo a lição.

À época, meu caro, desabrochava uma corrente filosófica marcada pelo darwinismo, em que a seleção natural era o princípio básico. Mais ou menos como o pensamento daqueles que hoje defendem o mercado como regulador das relações humanas. Machado os ironizaria como ironizou o “humanitismo” de Quincas Borba.

Eis um dos problemas encontrados pelo leitor iniciante da literatura: se não tiver alguns referenciais daquilo que está lendo, mergulha em tenebrosa confusão. Não aproveita o que lê e ainda acusa (neste caso do Adamastor) o Machado de cínico, o que não só é um erro como também tremenda injustiça.

Consegui dizer alguma coisa sobre o “humanitismo”, sobre a tendência darwinista de algumas correntes filosóficas, que hoje já não têm muitos adeptos.

Que entre os animais, terminei meu discurso, destituídos de valores éticos, prevaleça a lei do mais forte dá para entender, mas nós, seres humanos, temos coisa melhor do que as leis selvagens da força ou do mercado para nos dirigir.

Meu amigo ergueu as duas sobrancelhas, permaneceu algum tempo calado (talvez digerindo o que tinha ouvido), despediu-se e foi embora.

Leia também:

A fina ironia de Machado de Assis sobre a Abolição da Escravatura

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