Mesmo após a repercussão dos movimentos na esteira do MeToo e da maior conscientização da importância de lidar com casos de assédio e discriminação de gênero, as universidades brasileiras ainda enfrentam barreiras no combate à violência contra mulher e outros grupos.
Nos últimos anos, diversas instituições de ensino e pesquisa públicas criaram códigos de ética e resoluções que abordam as questões envolvidas na violência de gênero, como apoio às vítimas que denunciam assédio (sexual ou moral) ou discriminação.
Mas, na prática, a percepção é de que a resolução, na maioria dos casos, ainda é descentralizada, demora muito e apresenta medidas ainda pouco eficientes de acolhimento às vítimas.
Para a professora da Faculdade de Direito da UFPA (Universidade Federal do Pará) e coordenadora da Clínica de Atenção à Violência e do Grupo de Estudos e Pesquisa de Direito Penal e Democracia, Luanna Tomaz, a principal dificuldade enfrentada nos espaços de ensino público é a resposta institucional.
“Muitas vezes as universidades não sabem o que fazer diante de um relato de assédio e acabam tomando medidas desastrosas, ou demoram muito tempo para agir”, afirma.
Ela cita, por exemplo, acordos para que a vítima não assista mais às aulas durante um período, mas isso é insuficiente. “O ideal seria que elas sentissem nas universidades um ambiente seguro para a apuração”, avalia.
Segundo Tomaz, é louvável que diversas universidades do Brasil tenham formulado resoluções internas no que diz respeito à discriminação e ao assédio, mas falta colocar em prática tais ações. “A própria UFPA tem uma resolução [de enfrentamento de discriminação, assédios e violência], mas muitas vão no sentido de nomear o que é a violência e o assédio, mas não de como enfrentá-la”, diz.
Um exemplo de como tornar as medidas mais efetivas é fortalecer as ouvidorias que recebem as denúncias de assédio e os comitês que apuram esses casos.
A dificuldade em obter as provas também é uma reclamação constante, uma vez que muitos dos comitês avaliam a “palavra de um contra o outro”. “Frequentemente, o agressor tem acesso total aos autos da investigação e está presente nas audiências, algo que viola o Código Penal, que diz que se a vítima não se sentir confortável de estar na presença do agressor ele pode ser retirado da sala”, afirma Tomaz.
Nesse sentido, fortalecer os espaços de acolhimento, inclusive com iniciativas de grupos e coletivos femininos —assim como de movimentos negros, de LGBTQIA+ e de pessoas com deficiência— é fundamental para ajudar no amparo às vítimas.
Uma dessas iniciativas é a Rede Kunhã Asé (lê-se “cunhã axé” e combina “mulher” em guarani e “força” em iorubá), coletivo de mais de 30 mulheres formado no instituto de biologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Muitas vezes as universidades não sabem o que fazer diante de um relato de assédio e acabam tomando medidas desastrosas
Luanna Tomaz
professora de direito da UFPA e coordenadora da Clínica de Atenção à Violência
Luisa Diele-Viegas, herpetóloga (cientista que estuda répteis e anfíbios), integrante da rede e professora da UFBA, aponta que muitas vezes as vítimas são desacreditadas e faltam medidas efetivas de punição dos agressores.
Ela cita que a justificativa de alguns acusados de “falta de conhecimento” do que é ou não considerado assédio não tem cabimento mais em 2023. “Hoje há amplo acesso a documentos, resoluções e códigos de conduta que trazem o acesso à informação do que é considerado assédio, então isso não é uma justificativa”, afirma.
Para a antropóloga e pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília) Debora Diniz, é importante que, além de um espaço para acolhimento e investigação das denúncias, as universidades deem garantia de proteção. “A universidade precisa ser ágil no momento da denúncia para garantir os sistemas de proteção à vítima, mesmo que o processo de avaliação, que é de direito a todos que sofrem uma acusação, seja mais longo”, reflete.
Essa garantia é importante pelo fato de muitas das queixas se voltarem para o descrédito da palavra da vítima ou para a perseguição que a mulher pode sofrer quando faz a denúncia, e isso é ainda mais agravado quando uma única mulher faz o relato. “Em muitos casos, é comum que várias meninas já tenham anunciado de alguma forma que existe um ‘professor tarado’ no campus, que não se sentem confortáveis ao lado dele, mas quando se inicia o processo administrativo poucas denúncias vêm à tona, muitas vezes por medo de sofrer retaliações ou processos de calúnia do agressor”, avalia Tomaz, da UFPA.
A cultura do ambiente universitário também pesa. Diele-Viegas lembra que, sem medidas de apoio à entrada e permanência de grupos sub-representados nas universidades, haverá a perpetuação de comentários sexistas, racistas e de assédio.
“Existe o viés acadêmico, sexista, racista e homofóbico, que assume que os grupos minoritários não têm lugar nos espaços acadêmicos. Medidas de promoção de inclusão e permanência desses grupos até chegarem a posições de topo são fundamentais para reduzir as desigualdades e minimizar os assédios sofridos”, diz.
Para Diniz, da UnB, o próprio tempo necessário para a nomeação daquilo que foi vivenciado pode funcionar em uma escala diferente do processo disciplinar. “Muitas vezes uma disciplina vai ser finalizada sem que ela tenha tido ainda a coragem de reportar”, ressalta Diniz.
A antropóloga reforça que espaços de investigação e os comitês disciplinares, que vão aplicar as censuras nos casos em que houve assédio comprovado, são importantes, mas as ações não podem focar apenas a punição. “Existe também um caráter fundamental das universidades que é o de aprendizado. É fundamental também trazer o debate de violência de gênero, colocar ‘o dedo na ferida’”, propõe.
É importante entender também que o tempo da violência até a denúncia não corresponde ao tempo acadêmico. Muitas vezes uma disciplina vai ser finalizada sem que ela [a vítima] tenha tido ainda a coragem de reportar
Debora Diniz
antropóloga e professora da UnB
A reportagem buscou algumas das maiores universidades brasileiras e questionou quais são as medidas tomadas para enfrentar o assédio sexual em seus espaços. Leia a seguir:
USP (Universidade de São Paulo) – Criou, em 2020, um protocolo de atendimento de mulheres vítimas de violência nos campi. Este protocolo, segundo a universidade, é uma das ações do escritório USP Mulheres. Uma das prioridades da pasta, comandada pela geóloga Adriana Alves, é promover a equidade de gênero na universidade.
Unesp (Universidade Estadual Paulista) – Informa que desde 2022 vem implementando uma série de iniciativas nos 34 campi que fazem parte da universidade, como a criação de uma comissão de acolhimento às vítimas, uma política educativa para enfrentamento do assédio sexual, moral e todas as formas de discriminação e preconceitos em relação à origem, cor, gênero, orientação sexual, religião ou crença, nível socioeconômico, condição corporal física ou psíquica, a criação de um aplicativo para ajudar nas denúncias de violência sexual e um grupo de apoio às mulheres.
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) – Publicou uma resolução em 2020 que define as regras e procedimentos para prevenção e acolhimento de queixas de violência baseada em gênero e sexo. De acordo com a norma, as denúncias de violência sexual e de gênero são recebidas pelo Serviço de Atenção à Violência Sexual (SAVS) ou pela Secretaria de Vivência nos Campi (SVC). O órgão oferece apoio psicológico, acadêmico e policial à vítima de violência sexual e pode instaurar, caso seja o desejo da vítima, um processo de sindicância ou disciplinar para apurar a denúncia.
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) – Instituiu, em 16 de janeiro de 2023, conforme portaria n° 438, a Ouvidoria da Mulher como espaço institucional de acolhimento às vítimas. De acordo com a portaria, as denúncias de assédio e discriminação recebidas são registradas em sistema informatizado e encaminhadas às unidades competentes para a devida apuração, com a autorização da denunciante. A Ouvidoria da Mulher conta ainda com o apoio do Centro de Referência da Mulher da UFRJ para oferecer atendimento psicossocial às mulheres em situação de violência de gênero que expressem interesse pelo atendimento.
UFF (Universidade Federal Fluminense) – Criou a Comissão Permanente de Equidade de Gênero (Cpeg), que realiza ações propositivas e também fornece orientação a quem precisar. A comissão nasceu a partir do Grupo de Trabalho Mulheres na Ciência, já existente desde 2018 e passou a vigorar a partir de março do ano passado.
UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) – Possui uma cartilha que orienta como reconhecer e denunciar formas de assédio. Chamada “Assédio é crime”, a cartilha foi produzida pela Comissão do Campus Saúde da universidade e pela equipe do Centro de Comunicação da Faculdade de Medicina, com colaboração da Unidade de Comunicação do Hospital das Clínicas, da Escola de Enfermagem, e do Coletivo de Mulheres Alzira Reis. A universidade conta também com uma Ouvidoria para receber as denúncias e uma Rede de Direitos Humanos para dar apoio às medidas de combate à discriminação e violência no campus.
UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) – Tem uma política específica para prevenir e enfrentar casos de assédio moral e sexual, com ações de conscientização, acolhimento e encaminhamento das denúncias. Destaca também o Programa de Atenção à Saúde e Segurança da Mulher, que oferece atendimento psicológico e social às vítimas; uma campanha de capacitação aos servidores sobre a prevenção e enfrentamento do assédio moral e sexual; canais de denúncia por meio da Ouvidoria, da Comissão Permanente de Apuração de Denúncias (CPAD) e do Núcleo de Atenção à Mulher e Diversidade (Nudem); e parcerias com órgãos externos, como o Ministério Público e a Defensoria Pública para aperfeiçoar os mecanismos de prevenção e enfrentamento de assédios.
UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) – Possui Comissão de Ética Pública para receber, apurar e indicar penalizações, denúncias de infrações éticas, incluindo assédio sexual, e possui autonomia para encaminhar aos órgãos competentes para que as investigações mais aprofundadas sejam realizadas. Além disso, afirma atuar no fomento à participação de mulheres na ciência e na gestão acadêmica e tem também estudado a implantação do auxílio infância para estudantes que possuam filhos com idade de zero a seis anos e apresentem vulnerabilidade socioeconômica.
UnB (Universidade de Brasília) – Afirmou ter diversos mecanismos e instâncias para lidar com assédio sexual e psicológico, como a Secretaria de Direitos Humanos, a Coordenação de Mulheres e, no âmbito do Conselho de Administração da UnB, ainda está em discussão a Política de Prevenção de Combate ao Assédio Moral, Sexual, Discriminação e outras violências. A Ouvidoria da UnB é quem recebe as denúncias de assédio e discriminação.
UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) – Informou que o canal de escuta dos casos de assédio é a Ouvidoria e que a Comissão de Ética e o Serviço de Corregedoria fazem o acompanhamento dos casos para chegar a um processo administrativo disciplinar e para atuar de maneira educativa, consultiva, preventiva, conciliatória e apuradora dos casos.
UFPA (Universidade Federal do Pará) – Criou em 2020 uma resolução para a política de enfrentamento aos casos de discriminação, assédios e outras formas de violência. Dentre as ações citadas estão o incentivo de atividades curriculares que discutam as ações de equidade de gênero; promover debates sobre violência e discriminação de gênero; elaboração de materiais informativos e campanhas para o enfrentamento da discriminação, assédio e outras formas de violência; e o encaminhamento das denúncias.
UFBA (Universidade Federal da Bahia) – Não respondeu até a publicação deste texto.