Articulações negras importam

Em um cenário marcado por uma crise de caráter econômico, político e social causada pela pandemia, a disputa eleitoral nos Estados Unidos aprofundou ainda mais as tensões criadas pela administração do presidente Donald Trump. Enquanto um fenômeno multidimensional da política estadunidense que envolve dinâmicas de classe, gênero e raça, o trumpismo revelou diferentes faces, que na maioria das vezes se materializou em manifestações públicas de homens brancos da classe trabalhadora. Desde as primárias republicanas, Donald Trump flertava com supremacistas brancos que já tinham um canal aberto no Partido Republicano. É sempre bom lembrar que alguns republicanos estimularam a aproximação com o Tea Party, uma organização que construiu uma agenda libertária em 2009, mas, sob a presidência de Barack Obama, logo se metamorfoseou em um grupo de feição racista. Nesse sentido, Trump apenas cumpriu a função de reconduzir supremacistas brancos à política mainstream dos Estados Unidos, inflamando o debate racial que sempre esteve presente entre os temas mais discutidos na esfera pública. Entre discursos sobre o perigo dos imigrantes legais, as trapaças dos chineses e as badernas do Black Lives Matter, o presidente de forma direta ou codificada foi reforçando a associação entre cidadania de primeira classe e as experiências de branquitude.

A América Grande Novamente, embora apoiada por figuras como o rapper Kanye West, não apresentava uma natureza inclusiva, nas entrelinhas o Trump falava do retorno a uma época não exata, provavelmente a década de 1950, em que a ideia de Sonho Americano foi sinônimo de prosperidade branca. Nesse quadro, em uma trajetória de levantes contra a violência institucional da polícia estadunidense que se iniciou no final da era Obama, a militância do Black Lives Matter se transformou em um dos movimentos sociais que mobilizaram a oposição ao governo de Trump. Desde 2013, o movimento vinha pautando o debate sobre a questão racial e as políticas públicas, que ganhou uma dimensão muito maior com o assassinato de George Floyd pela polícia e as manifestações que se espalharam pelas cidades dos Estados Unidos. Donald Trump se esforçou para enquadrar os levantes como insurreições antidemocráticas, mas a força das mobilizações negras contribuiu para o avanço das narrativas sobre racismos institucionais e sistemáticos que prevaleceram nas interpretações sobre as causas das tensões raciais.

Entretanto, os termos levantes e insurreições para se referir aos protestos liderados pelo Black Lives Matter são limitados para dimensionar os esforços dos ativistas negros de diferentes localidades que ao longo dos anos articularam as suas bases e constituíram agendas que englobavam temas além da violência policial, como a precarização do trabalho e o acesso à saúde entre as comunidades negras. No momento em que a crise pandêmica e o assassinato de Floyd deflagraram as manifestações nas cidades estadunidenses, o impulso agressivo das comunidades negras foi conduzido por lideranças que já tinham experiências com as táticas de manifestações de ruas e, por outro lado, já haviam construído o debate sobre o financiamento das polícias. O que num primeiro momento apareceu ser um movimento espontâneo na imprensa era, na verdade, consequência do trabalho de lideranças negras. Essas mesmas articulações seriam retomadas em vários distritos eleitorais para mobilizar o voto negro, incitado pelos discursos racistas do presidente Donald Trump.

Os eleitores negros desde a década de 1940 votavam predominantemente no Partido Democrata, entretanto, apesar de porcentagens entre 85 e 90 por cento para o partido, o comparecimento era menor em comparação aos demais eleitores. O primeiro teste do Black Lives Matters, e tão importante quanto a eleição presidencial, aconteceu no final de junho, quando as lideranças do movimento registraram eleitores negros para apoiar os candidatos ao congresso nas primárias democratas que estavam alinhados com a sua agenda. Jamaal Bowman, da cidade de Nova Iorque, foi um dos mais bem sucedidos e se elegeu para compor “o esquadrão” – grupo de congressistas democratas de esquerda. Para algumas lideranças do Black Lives Matter, a moderação de Joe Biden e de grande parte do partido não poderiam contemplar as demandas das ruas, a estratégia era eleger congressistas mais progressistas e radicais para pautar a agenda do movimento. Entretanto, todo o esforço nessa etapa foi fundamental para impulsionar e ampliar o voto negro, favorecendo Biden na disputa com Donald Trump.

Para além do entusiasmo anti-trump, havia iniciativas financiadas por jogadores da NBA, que incorporaram o protesto do Black Lives Matter aos jogos da liga de basquete. Esse cenário de “levantes negros” foi obviamente capturado pelos democratas que eletrizaram a suas redes tradicionais conectadas com as igrejas, que são espaços tradicionais da política afro-americana. Entretanto, como acima observado, antes das manifestações, os democratas já promoviam o registro de eleitores negros para primárias que envolveram grupos associados ao Bernie Sanders, que contou com o apoio de algumas figuras do Black Lives Matter, e a construção da base de Joe Biden, que contou com as redes mais tradicionais do ativismo afro-americano. Na Carolina do Sul, o congressista negro Jim Clyburn organizou o eleitorado negro que foi o grande responsável pela primeira vitória de Biden em uma das rodadas das primárias democratas. O triunfo no estado viabilizou a candidatura de Biden, considerada até então natimorta, mesmo com o apoio do ex-presidente Barack Obama.

Ao confirmar sua candidatura para as eleições presidenciais, Biden selou o seu compromisso com a agenda negra, escolhendo a senadora negra Kamala Harris para compor a chapa. Obama, que havia participado pouco do processo, começou a fazer discursos mais contundentes e importantes do que os de Biden, explorando a má condução da crise de Donald Trump durante a pandemia. Enquanto os candidatos à presidência se digladiavam, em diferentes partes do território, onde havia a possibilidade de vitória do democrata, as bases negras foram acionadas. Um dos destaques das eleições de 2020 foi o desempenho dos democratas no estado da Geórgia, que tradicionalmente elegia os candidatos republicanos. A vitória foi alcançada graças ao trabalho de Stacey Abrams, que desde 2013 coordenava um projeto de registro de votos de eleitores negros e latinos. Em sua trajetória política, Abrams foi eleita para a Câmara dos Representantes da Geórgia e depois se tornou a primeira mulher negra a disputar as eleições para o governo em 2018, perdendo por uma pequena margem de 55 mil votos. Em 2020, Stacey Abrams assumiu a responsabilidade de “virar o voto” a favor de Joe Biden, retomando a sua experiência de registro de votos e confirmando a vitória no estado.

Essa mesma base mobilizada por Abrams para a eleição presidencial ajudou a eleger os dois senadores democratas: Jon Ossof, o senador eleito mais jovem desde a década de 1970, e Raphael Warnock, o primeiro negro eleito para o Senado no estado. Warnock, durante o processo eleitoral, explorou as suas conexões com a igreja batista em Atlanta e reforçou em sua agenda as desigualdades de raça e classe, recuperando elementos do evangelho social de Martin Luther King, figura histórica do Movimento pelos Direitos Civis que também atuou como liderança religiosa na cidade. Essas disputas eleitorais ganharam destaque da imprensa porque definiram uma maioria favorável aos democratas no Senado, mas também porque, nesse momento de desfecho, reforçaram o simbolismo da mobilização do eleitorado negro que derrotou um presidente que passou quatro anos flertando com supremacistas brancos e elegeu uma chapa democrata moderada que trouxe a reboque figuras negras progressistas.

Os democratas, no entanto, não puderam celebrar a segunda vitória na Geórgia da maneira como desejavam. Antes de se encerrar a transição governamental, Trump foi protagonista de um evento que interrompeu as formalidades para a oficialização da eleição de Joe Biden. Mais uma vez, veio à tona a questão racial, dessa vez não a partir do envolvimento de negros, mas do fracasso de uma turba de brancos que invadiu o Capitólio estimulada pela narrativa de fraude eleitoral sem evidências do presidente. Os indivíduos presentes na manifestação ostentavam símbolos associados à supremacia branca, como bandeiras confederadas, cartazes associados a milícias e camisetas que estampavam frases antissemitas. Um dos pontos mais debatidos foi a condescendência da segurança com os manifestantes, que não enfrentaram o rigor de ações que são comuns contra grupos e movimentos sociais de outras orientações ideológicas, principalmente as organizações negras. Um outro aspecto, comum tanto na cobertura da imprensa estadunidense quanto brasileira, foi o caráter anômalo atribuído ao evento, supostamente sem precedentes históricos.

Ainda que a invasão pudesse ser considerada algo inédito, vários elementos que a compuseram faziam parte da tradição política estadunidense. O ataque a autoridades políticas é um deles, os Estados Unidos tiveram quatro presidentes assassinados: Abraham Lincoln (1865), James A. Garfield (1881), William McKinley (1901), e John F. Kennedy (1963), além de Theodore Roosevelt e Ronald Reagan que foram vítimas de atentados. A formação de turbas para invasão de espaços de autoridade foi recorrente, nos estados do Sul as populações brancas se reuniam em frente a delegacias ou tribunais para linchar negros acusados injustamente de cometerem crimes. Em muitas ocasiões, os policiais convocados para garantir a ordem faziam vistas grossas às movimentações dos linchadores, revelando uma fronteira sem definição entre repressão policial e supremacia branca. Não faltaram casos de cooperação entre policiais e supremacistas para conter manifestantes do Movimento pelos Direitos Civis na década de 1960, que em várias situações acabaram mortos em ataques violentos. Mas esse é um comportamento que não ficou no passado, em uma das manifestações do Black Lives Matter nas recentes jornadas, um adolescente branco de 17 anos armado atirou e matou dois manifestantes enquanto “cooperava” com as forças policiais.

As articulações negras que se traduziram em uma forte presença do eleitorado negro nessas eleições contribuíram para dar um fim ao governo de Donald Trump. Entretanto não há um consenso sobre o futuro dessa base extremista e supremacista que se transformou em um ativo eleitoral, garantindo uma votação contundente em alguns estados democratas, inclusive Nova Iorque, evitando uma onda pró-Biden. A invasão no Capitólio pode ter sido o início da retração dos supremacistas na política mainstream, ou o primeiro passo para a reconfiguração dessa base sob a liderança de outro republicano. O fato é que, assim como os demais elementos elencados acima, a supremacia branca tem o seu lugar cativo na sociedade. Esse fenômeno não pode ser tratado como uma anomalia, a não ser que se aceite o discurso do excepcionalismo da democracia estadunidense. Manifestações públicas de supremacistas ocorreram ao longo da história sem violar o sentimento de normalidade democrática de muitos cidadãos. Em 1939, por exemplo, o Madison Square Garden, um dos mais importantes palcos de eventos na cidade de Nova Iorque, recebeu um encontro de 20 mil nazistas em um ato pró-América. Já David Duke, que serviu como Wizard da Ku Klux Klan, foi membro dos dois partidos políticos nos Estados Unidos e eleito representante na câmara legislativa da Louisiana na década de 1980. O negacionismo e o conspiracionismo presentes nos discursos de Donald Trump foram reproduzidos por outros nomes do Partido Republicano e também sempre tiveram espaço na programação da Fox News.

Portanto, os Estados Unidos, em sua complexidade, produziram figuras como o Martin Luther King, que tinha uma ideia radical de democracia, e autoritários como George Wallace, que encarnou o espírito da supremacia branca nos anos 60. O simbolismo do engajamento negro nas últimas eleições por si só não é suficiente para assegurar iniciativas voltadas para a população negra, por isso as articulações negras que elegeram os democratas cumprirão um papel importante na reconfiguração da democracia estadunidense na era pós-Trump.

Flávio Thales Ribeiro Francisco. Professor dos Bacharelados de Ciências Humanas e Relações internacionais da UFABC.
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