Asfixia, a síntese do Brasil

Em meados de julho de 2020 surgiu a notícia de uma mulher negra sendo agredida[1] por um policial em Parelheiros, zona sul de São Paulo, nos mesmos moldes de George Floyd, asfixiado por um policial nos EUA. Destaque-se que, apesar de ter sido divulgado pelos meios de comunicação, o caso não levou a um “#blackouttuesday” nas redes, “hashtag”, inclusive, replicada no Brasil, quando do assassinato do estadunidense. Ainda, nos dias seguintes à veiculação do episódio em São Paulo, soube-se que não ocorreu em julho, mas em 30 de maio de 2020, poucos dias após a morte de Floyd[2]. 

Não se trata de julgar qual caso é mais grave, até porque ambos são. Também não se pretende comparar racismo entre esses países, porque em ambas sociedades ele está estruturalmente presente. Mas, chamar a atenção para o fato de que, além de ações promovidas por grupos que tem essas questões como pauta, a indignação social é infinitamente menos rumorosa. E interessa, portanto, analisar o comportamento da sociedade, não indo às ruas pleiteando direitos, reivindicando reparação, tensionando a ordem, nem mesmo com manifestações virtuais de vulto.

Um dos pontos a acentuar, inicialmente, é que em virtude dos números alarmantes, violência e letalidade policial têm sido tema de sólidos e acalorados debates há algumas décadas. De acordo com relatório do “Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2019” 99,3% das vítimas de intervenções policiais são homens, 75,4% são negros e 81,5% das vítimas possuíam ensino fundamental, completo ou não. Além disso, para cada policial morto nessas ações 18 civis são assassinados[3]. 

Esses dados conferem substância ao debate e autorizam afirmar que a agressão policial no caso da mulher negra de Parelheiros sintetiza a construção do Brasil sob as categorias de classe, raça e gênero. Vale lembrar que a violência policial, e de gênero, já levou o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos[4] tendo sido condenado em fevereiro de 2017.

Definitivamente, tais práticas são resultado da organização sócio-política brasileira, afastando, portanto, afirmações baseadas no senso comum de que se tratam de casos isolados bem como de atribuição de responsabilidade aos agentes policiais, individualmente. O que se vê, a partir disso, é a possiblidade de refletir sobre aspectos estruturais da sociedade brasileira, sendo que aqui, centra-se na forma como a democracia é manifestada.

Florestan Fernandes (1920-1995) trabalhou com a concepção de democracia restrita que, em síntese, significa uma democracia com aparência de democracia plena, mas que serve à classe dominante, restrita aos setores privilegiados[5]. Configura-se a partir de uma profunda desigualdade na organização socioeconômica na qual “uma minoria social dominante […] retém para si todos os privilégios como se fossem direitos e […] exclui a grande maioria de todos os direitos como se isso fosse natural.”[6] Assim, estabelece-se o monopólio da cidadania válida[7], restrita a pequena parcela de “pessoas de bem”.

As distinções sociais derivadas de classe, raça e gênero e suas articulações chancelam, ou não, o exercício de direitos e (des)autorizam a fruição da cidadania. A mulher negra, trabalhadora residente em Parelheiros, São Paulo, está excluída da cidadania válida, restando-lhe a sujeição à ação dura e arbitrária do Estado.

A democracia restrita está combinada à forma como o Estado se desenhou, à particularidade dessa instituição brasileira, e denota a incompatibilidade com a universalidade de direitos. Florestan Fernandes entende que, dadas as condições históricas, o Estado se caracteriza como autocrático, redefinindo o modelo clássico de democracia moderna e centralizando em si todas as tensões e contradições de uma sociedade de classes. A autocracia burguesa, para Florestan Fernandes, é a estrutura histórica que, por meio do Estado, organiza-se pelo formalismo institucional, pela política econômica dependente e pela neutralização das lutas populares, usando da força se assim for entendido como necessário.

Um Estado que concentra poderes e se traveste de democrático, mas que, em verdade, se apresenta forte para conter demandas populares, até mesmo as que estão dentro da ordem capitalista, com agentes públicos incapazes de conduzir suas práticas a partir do rol de direitos humanos, interiorizados no ordenamento jurídico pátrio.

O Estado autocrático nega a ampliação e a materialização de direitos e, nessa postura de atendimento de um seleto grupo, exerce forte contenção, valendo-se de braço armado bem estruturado. O Brasil conta “tão somente com uma ‘paz-armada’”[8], pois, treina suas polícias para lidar com o inimigo que nada mais é senão o trabalhador, a mulher, o negro, a criança pobre, o grupo LGBT, o indígena.

A diferença de reação da sociedade brasileira às práticas violentas das polícias estadunidense e brasileira revela o quão naturalizado está a ausência de direitos para grande parte da população; o quão enraizados estão a democracia restrita e o Estado autocrático nas estruturas institucionais, sociais e políticas. 

A asfixia da mulher negra e trabalhadora por um agente do Estado e o nível de repercussão na sociedade brasileira é a síntese da formação política do país. Afinal, historicamente, asfixia-se o cidadão dito não válido, da mesma forma que se asfixia o Brasil todo, esterilizando as potencialidades humanas. 


[1] Mesmo diante da exposição do caso, a mulher quer manter seu nome sob sigilo, pois teme represálias. Ela sofreu ferimentos no rosto, nas costas e teve a perna quebrada.

[2] Caberia indagar se não se tinha conhecimento das imagens à época ou se não foi veiculada por conveniência. Entretanto, esse ponto extrapola ao que aqui se propõe. O caso vindo à tona, soube-se que a mulher agredida procurou a corporação, mas que não foi dado andamento correto por conta da pandemia. Também há informações de que o policial foi transferido para outro Batalhão.

[3] Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf Acesso em 14 jul.2020.

[4] Trata-se do Caso 11.566 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Favela Nova Brasília X Brasil) na qual, em fevereiro de 2017, o Brasil foi condenado pela violação de direitos e garantias devido à violência policial praticada em incursões ocorridas em 1994 e 1995, as quais resultaram em chacinas de 26 pessoas residentes na comunidade, mormente jovens negros, e estupro de uma mulher e duas adolescentes sem que, acerca da prática de todos esses crimes tenha havido investigação, processamento, julgamento e condenação dos responsáveis pelos crimes. Na decisão, dentre outras medidas, a Corte determinou a substituição da expressão “autos de resistência e “resistência seguida de morte” por “homicídio derivado de intervenção policial” ou “lesão corporal derivada de intervenção policial”; vinculação dos dados sobre letalidade policial às metas de segurança pública; a adoção de perspectiva de gênero nas práticas institucionais, ou seja, que o Estado brasileiro promova a realização de pesquisas estatísticas sobre o tema; e assunção de que homens e mulheres vivem em situações materialmente desiguais, impondo às instituições que suas ações e estratégicas tenham postura transversal guiada pela teoria de gênero desenvolvida por teóricos nacionais e internacionais.

[5] FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes: a pessoa e o político. Revista Nova Escrita Ensaio. nº 1. Dez/1980. p. 09-39. Entrevista concedida a J. Chasin, Heleieth Saffioti, Paulo Douglas Barsotti, Narciso J. Rodrigues Jr, Marilena G. S. Pottes, Ester Vaisman e Paulo Edgar Rezende, p. 38.

[6] LIMOEIRO-CARDOSO, Miriam. Capitalismo dependente, autocracia burguesa e Revolução social em Florestan Fernandes. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 1, n. 1, p.1-12, dez. 1995. Quadrimestral. Http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/limoeirocardosoflorestan1.pdf. Disponível em: <http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/limoeirocardosoflorestan1.pdf>. Acesso em: 02 out. 2018, p. 05.

[7]  FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 338.,

[8] FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 320.


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