Bolsonaro cria ordem do mérito Princesa Isabel; historiador diz que é ‘provocação em fim de festa’

Desde a década de 1970, movimentos sociais defendem valorizar o papel de movimentos abolicionistas na luta contra a escravidão.

FONTEG1, por Matheus Moreira
Douglas Belchior (Reprodução)

O presidente Jair Bolsonaro (PL) criou, na última sexta-feira (9), a Ordem do Mérito Princesa Isabel para homenagear pessoas e entidades que tenham prestado “notáveis serviços” relacionados à proteção e à promoção dos direitos humanos.

A ordem faz referência à princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea, que proibia a escravidão. Ela era filha do imperador do Brasil Pedro II. No papel, o país aboliu a escravidão em 13 de maio de 1888, mas a luta pela liberdade datava de muito antes.

A abolição no Brasil está longe de ter sido uma benevolência da monarquia. Na verdade, foi resultado de diversos fatores, entre eles, o crescimento do movimento abolicionista na década de 1880, cuja força não podia mais ser contida.

“Apenas 5% da população negra no Brasil, quando o ato foi assinado pela princesa Isabel, ainda estava escravizada. A princesa não carrega esse significado que justifique uma homenagem a ela em um prêmio no campo de direitos humanos. Isso soa muito mais como uma provocação de fim de festa, de fim de mandato”, diz Douglas Belchior, professor de história e cofundador da Uneafro (União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora).

Bolsonaro foi derrotado na tentativa de se reeleger presidente e deixará o cargo em 31 de dezembro.

Os movimentos abolicionistas foram os responsáveis por pressionar o império internamente. Entre as formas de resistência, estavam grandes embates parlamentares, manifestações artísticas, até revoltas e fugas massivas de escravos, que a polícia e o Exército não conseguiam – e, a partir de certo ponto, não queriam – reprimir. Em 1884, quatro anos antes do Brasil, os Estados do Ceará e do Amazonas acabaram com a escravidão, dando ainda mais força para o movimento.

O contexto mundial também serviu para aumentar a pressão diante da comunidade internacional, com as abolições assinadas pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, mais cedo naquele século.

Uma das razões para que movimentos negros questionem o protagonismo da monarca na libertação das pessoas escravizadas é que a Lei Áurea não promoveu políticas públicas para inclusão socioeconômica de pessoas pretos e indígenas escravizadas. Eles não tinham direito a terra nem documentos, e muitas vezes trabalharam sem remuneração adequada.

Belchior – que integrou a equipe de transição de Lula (PT) mas diz não estar falando em nome do grupo – lembra que, antes de existir o 20 de novembro – que celebra da luta contra a escravidão – havia manifestações populares em comemoração ao 13 de maio.

Desde a década de 1970, entretanto, movimentos negros pleiteiam a substituição do dia 13 de maio pelo 20 de novembro, data que se convencionou como sendo a da morte de Zumbi dos Palmares.

A mudança busca valorizar o papel dos movimentos abolicionistas na luta contra a escravidão.

Em 9 de janeiro de 2003, o 20 de novembro foi incluído como Dia da Consciência Negra no calendário escolar brasileiro por meio da lei 10.639, que também obrigou o ensino de história e cultura afro-brasileira no país.

“Pelo que vejo, é muito anacrônico falar sobre isso. [A criação da honraria] é uma provocação para reafirmar o papel ideológico do governo. É um ato simbólico”, diz.

Bolsonaristas contra cotas raciais

Bolsonaristas ligados ao presidente já se manifestaram contra cotas raciais e até mesmo contra a celebração do Dia da Consciência Negra em novembro. O ex-presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, chegou a dizer que gostaria de mudar o nome da instituição para Princesa Isabel.

A forma como o governo atua no campo dos direitos humanos é “sempre em contraposição a como os movimentos sociais se colocam”, avalia Claudielle Pavão, professora de história da rede pública da Prefeitura do RJ e pesquisadora de relações étnico-raciais e de gênero.

Ela argumenta também que, apesar de a ordem de mérito homenagear uma mulher no âmbito dos direitos humanos, as mulheres não foram priorizadas pelo governo federal nesse âmbito.

A gestão Bolsonaro propôs cortar em 94% os recursos no Orçamento para combate à violência contra mulheres, segundo um levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

“O governo sempre se colocou na negação. O próprio responsável pela Fundação Palmares era contra as questões raciais. Isso não chega a ser uma contradição, porque, na verdade, diz muito sobre esse governo, sobre a articulação e as pessoas que foram escolhidas para estar nele”, afirma Claudielle.

g1 procurou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

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