Branqueamento, indígenas e o tráfico de escravos

FONTEPor Samuel Rocha Ferreira, enviado para o Portal Geledés

Em sua tese de livre docência, John Monteiro afirmou que “não se pode menosprezar a importância da abolição, em 1850, do tráfico negreiro e a lenta extinção da escravidão no Brasil para o debate indigenista”. Poderíamos, na verdade, afirmar que já na década de 1820 o debate acerca do fim do trato negreiro teve grande relevância na formulação de projetos de políticas indigenistas. 

Logo após a declaração da independência do Brasil, D. Pedro I iniciou negociações com países europeus em busca de reconhecimento diplomático. A Inglaterra, a nação mais poderosa à época, exigiu a abolição do trato negreiro “dentre em mui curto período” como condição indispensável para reconhecer o novo país. Após aproximadamente quatro anos de negociação, um acordo foi selado entre os dois países: o tráfico de escravos seria abolido três anos após a sua ratificação no Parlamento brasileiro, o que ocorreu em março de 1827. 

Todavia, como afirmou Rafael Marquese, a estabilidade da escravidão demandava um contínuo abastecimento de africanos escravizados. De fato, a única possibilidade de substituir braços escravos perdidos, fosse pela alta taxa de mortalidade, baixa taxa de reprodução natural entre os cativos ou um nível relativamente alto de alforrias, foi a importação contínua e massiva da mão de obra africana. Mas a proibição do comércio de escravos colocava esta estabilidade em xeque.

A despeito da enorme importância do tráfico negreiro para a dinâmica da escravidão no Império do Brasil, poucas foram as vozes que publicamente se opuseram ao pacto anglo-brasileiro durante o Primeiro Reinado, justamente pela percepção de que o tráfico de escravos inevitavelmente iria acabar. Por outro lado, informados por este horizonte de expectativas, políticos e publicistas fizeram circular propostas para a obtenção de braços alternativos aos africanos escravizados. A questão não era apenas sobre mão de obra, mas também mitigar ou acabar com os problemas associados à escravidão africana e ao trato negreiro. 

O medo de um levante escravo similar à Revolução Haitiana foi frequentemente citado. Em 1821, João Severiano Maciel da Costa publicou uma Memória na qual apresentou argumentos contrários ao comércio de escravos e à escravidão, bem como sugestões para a obtenção de braços alternativos. Na sua crítica à escravidão, Maciel da Costa afirmou que os cativos eram “conduzidos unicamente pelo medo do castigo, e por sua mesma condição inimigo dos brancos”. “Desligados de todo vínculo social”, eles e a própria escravidão representavam uma grande ameaça ao Estado. 

Mas para além da insegurança, outro mote da época foi a imoralidade associada aos africanos escravizados. Em 1818, José da Silva Lisboa, por exemplo, afirmou que os africanos viviam em “eterna luta doméstica, indizível estrago da Moralidade e escândalo da Religião”. Em 1823, na Representação que apresentou ao Parlamento solicitando o fim do trato negreiro, José Bonifácio escreveu que “nós [proprietários de escravos] tiranizamos os escravos, e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua imoralidade, e todos os vícios”.

Capa da Representação sobre a escravatura de José Bonifácio
Fonte: Biblioteca Brasiliana Guitar e José Mindlin

Vale mencionar ainda que outro problema associado à escravidão e ao trato negreiro foi o perigo de africanizar o Brasil. Após observar que a introdução anual de milhares de africanos escravizados tornava a população branca minoritária, o já citado João Severiano Maciel da Costa afirmou que, se o tráfico de cativos continuasse, “em breve, a África seria transplantada para o Brasil”. Preocupado com a mesma questão, José da Silva Lisboa exigiu que “não se converta o Brasil em Negroland”. 

Os políticos e publicistas do Primeiro Reinado viram na importação de imigrantes europeus uma maneira de resolver a carência de mão de obra e os problemas associados à escravidão africana. Na Fala do Trono de 1829, D. Pedro I defendeu “facilitar a entrada, e promover a aquisição de colonos prestadios, que aumentem o número de braços, de que tanto carecemos” para desenvolver a atividade agrícola. Os colonos, claro, seriam provenientes da Europa. 

A Câmara dos Deputados respondeu à sugestão do Imperador no Voto de Graças do mesmo ano, afirmando que faria “quanto estiver ao seu alcance para promover uma colonização útil, e laboriosa, que aumentando os braços aumente ao mesmo tempo os saudáveis e necessários hábitos da indústria e da moral”. O contraste não poderia ser mais evidente: de um lado a imoralidade dos africanos, de outro, a moral elevada dos imigrantes brancos provenientes da Europa.

Capa da Memória escrita por João Severiano Maciel da Costa, publicada em 1821.
Fonte: Biblioteca Brasiliana Guitar e José Mindlin

Mas a imigração europeia, embora fosse a solução preferencial, não foi o único meio apontado para prover mão de obra e mitigar a imoralidade associada aos africanos. Novamente, João Severiano Maciel da Costa sugeriu que, além da importação de imigrantes europeus, os indígenas fossem “civilizados”. Caso a “civilização” dos índios fosse bem sucedida, seria possível, segundo ele, enviar os africanos escravizados e libertos para a África. 

Em 1826, o Ministério dos Negócios do Império demandou informações às províncias para construir uma política indigenista em nível nacional, o Plano Geral de Civilização dos Índios. Na resposta da província de Pernambuco, havia a expectativa de que a “civilização” dos indígenas ajudaria a diminuir o “déficit de escravos, dessa gente que não tem servido senão para corromper a moralidade, e a honestidade, e amaldiçoar os trabalhos campestres”.

Quatro anos antes, José Arouche de Toledo Rendon republicou o seu plano de “civilização” dos índios, que tinha sido escrito e publicado pela primeira vez em 1798. Para Rendon, o sucesso da política indigenista poderia ser medido tanto pelo fornecimento de “milhares de braços à agricultura, [qu]e nos aliviará em parte da necessidade do negro comercio da raça africana”, quanto pela auto identificação dos indígenas como “brancos”. 

Neste debate, vale a pena observar que a questão posta não era apenas sobre mão de obra, mas sobre a nação brasileira. Para as elites oitocentistas, mitigar a presença africana era fundamental para viabilizar o Brasil enquanto nação civilizada. 

Vale observar que os membros da nação brasileira deveriam ser, eles próprios, “civilizados”. Neste sentido, é significativo que nas discussões da Constituinte de 1823 foi ponto pacífico que a cidadania brasileira só poderia ser acessada através da “civilização”. Não por acaso, o deputado Souza França afirmou que os indígenas que viviam nas matas não eram cidadãos “enquanto não abraçam a nossa civilização”. 

A noção de “civilização” esteve associada à teoria dos quatro estágios, desenvolvida a partir da segunda metade do século XVIII. Como afirma Flávia Varella, esta classificação das sociedades humanas estabeleceu um “padrão de desenvolvimento humano que permitia […] delimitar o estágio em que as sociedades se encontravam por meio da descoberta do seu modo de subsistência”. As sociedades caçadoras coletoras estariam no estágio mais primitivo. Com progresso social, estas sociedades passariam a ter o pastoreio como modo de subsistência. O desenvolvimento das atividades pastorais levaria a uma sociedade agrícola. No último estágio do desenvolvimento humano estariam as sociedades civilizadas, marcadas pela opulência, propriedade privada, intensa atividade comercial e desenvolvimento do direito e de desigualdades socioeconômicas. 

Se sociedades caçadoras coletoras, pastoris ou agrícolas poderiam ser encontradas na América, África ou Ásia, os adeptos da teoria dos quatro estágios concordavam que somente na Europa havia sociedades civilizadas. Ronald Raminelli sugeriu que esta interpretação do desenvolvimento das sociedades foi relevante para a consolidação da ideia de raça, respaldando não apenas a alegada superioridade branca, mas também as nações europeias como portadoras da “civilização”, que deveria ser promovida nas colônias. Assim, é provável que a ideia de “civilizar” os índios fosse informada por alguma noção de branqueamento. Temos, portanto, indícios que apontam que não somente a importação de imigrantes europeus, mas também a “civilização” dos índios foram pensadas como meios para branquear a nação brasileira. 

É importante observar que estas propostas não saíram do papel durante o Primeiro Reinado. Por um lado, não se constituiu uma política indigenista em nível nacional, deixando a sua formulação ao sabor das elites provinciais. Evidentemente que houve notável resistência dos indígenas às pretensões assimilacionistas das elites locais e imperial. Conforme os seus interesses, eles performaram enquanto indígenas “civilizados” ou a sua antítese, os indígenas “selvagens”. Por outro lado, as propostas para trazer imigrantes europeus não prosperaram. Por fim, vale lembrar que a partir de meados da década de 1830, o tráfico ilegal de escravizados atingiu escala massiva e durou até 1850. 

Como afirmou John Monteiro, a abolição do trato negreiro em 1850 informou o debate indigenista. Cinco anos antes, tinha sido promulgado o Regulamento das Missões, uma política indigenista de perspectiva nacional. Inúmeros políticos e membros da elite imperial esperavam que esta política indigenista não apenas provesse braços alternativos ao africano, mas também branqueasse o Brasil.

A história do indigenismo no século XIX tem importantes pontos de conexão com a história do tráfico escravista. A investigação dessas conexões permite compreender como possibilidades de branqueamento foram projetadas na nação brasileira, para além da mais conhecida: a imigração europeia ocorrida entre o último quartel do século XIX e 1930. Certamente, o estudo dessas conexões possibilita uma melhor compreensão das articulações entre o racismo anti-indígena e o racismo antinegro.

 

Assista ao vídeo do historiador Samuel Rocha Ferreira no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF08HI06 (8° ano: Aplicar os conceitos de Estado, nação, território, governo e país para o entendimento de conflito e tensões); EF08HI14 (8° ano: Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira no final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas); EF08HI27 (8° ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas e as populações negras nas Américas).

Ensino Médio – EM13CHS105 (Identificar, contextualizar e criticar as tipologias evolutivas (como populações nômades e sedentárias, entre outras) e as oposições dicotômicas (cidade/ campo, cultura/ natureza, civilizados/bárbaros, razão/ sensibilidade, material/ virtual, etc.) explicitando as ambiguidades e a complexidade dos conceitos e dos sujeitos envolvidos em diferentes circunstâncias e processos); EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precárias desses grupos na ordem econômica atual).

 

Samuel Rocha Ferreira 

Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); E-mail: samueellrochafe@hotmail.com; Twitter: @samukblack

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
-+=
Sair da versão mobile