Cansado de ouvir sobre machismo e racismo? Imagine quem vive isso

Não querer discutir temas tão importantes é sintomático de uma sociedade imatura para o debate sério

Por Djamila Ribeiro Do Carta Capital 

FOTO: Daisy Serena

“Consciência Negra Feminista”, por Patrick Monteiro, Ana Clara Marques e Fernanda Sunega, by GRIF MAÇÃS PODRES

Quem é feminista ou milita na luta antirracista ou no movimento LGBT, com certeza já ouviu de alguém a frase: “Ah, mas vocês só falam disso” ̵ seja para expressar cansaço ou destilar ódio.

Essas pessoas, obviamente, ignoram que machismo e racismo são elementos estruturantes dessa sociedade, logo nenhum espaço estará isento dessas opressões. Basta vermos as desigualdades salariais entre homens e mulheres ̵ se falarmos de mulheres negras, a distância é maior ainda ̵ ou o número de jovens negros assassinados pelo Estado.

Para nós, falar desses temas é questão de sobrevivência, é denunciar a dura e desigual realidade. Pedir para pararmos de falar disso, seguindo a síndrome Morgan Freeman de ser, é querer manter as coisas como estão. Freeman, em uma entrevista, disse que o dia em que pararmos de falar de racismo, ele deixará de existir, como se racismo fosse uma entidade.

Fazendo uma analogia simplista, e um “argumento” simplista como esse requer uma analogia assim, se uma pessoa está com câncer e deixa de falar nisso e procurar tratamento, a doença simplesmente vai desaparecer? Não querer discutir temas tão importantes é sintomático de uma sociedade imatura para o debate sério. Há uma frase que circula nas redes sociais que explica bem: “Se você está cansado de ouvir falar sobre racismo, imagine quem vive isso todos os dias”.

Fora isso, há os intelectuais e especialistas que adoram dizer serem pessoas que falam de tudo, arvoram-se por falar de tudo. Esses também se referem a nós como pessoas que “só sabem falar disso”. Nesses casos, eu julgo ser pior, porque essas pessoas têm acesso a um debate mais crítico, mas preferem se esconder por de trás de seus privilégios.

Criam categorias como literatura feminina, assuntos para mulheres. A literatura produzida por eles é tida como universal e a feita por mulheres, “literatura feminina”. Alguém já ouviu alguém falar em literatura masculina? Criam sub categorias para hierarquizar arte e conhecimento. Julgam que falam do universal enquanto nós só falamos do específico, do “nosso mundo”, quando é justamente o contrário.

Ao falarmos de nós, estamos denunciando o quanto essa categoria universal é falsa, pois tem como base o homem, o branco. Apontar isso, é justamente ampliar essa categoria de universalidade, fazê-la abranger um número maior de possibilidades de existência.

Se racismo e machismo são elementos fundantes dessa sociedade, as hierarquizações de humanidade serão reproduzidas em todos os espaços. Deste modo, a ciência já foi utilizada para legitimar racismo através dos estudos de evolução biológica do século 19 que introduziu o conceito de “racismo biológico”, assim como também para querer provar uma “inferioridade natural” da mulher.

Como disse Bourdieu: “A ciência neutra é uma ficção. Uma ficção interessada”. Há o interesse de quem possui os privilégios sociais de criar mecanismos de manutenção desses privilégios, seja pela ciência, pela arte ou pela educação. Lélia Gonzalez, intelectual e feminista negra aborda essa questão em suas obras.

Criticando a ciência moderna como padrão exclusivo para a produção do conhecimento, vê a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal é branco.

Nada é isento de ideologia. Como acadêmica e militante, ouço por parte de alguns acadêmicos que sou ideológica por estudar feminismo, como se eles também não tivessem seguindo uma ideologia, inclusive a de decidir quais temas são legítimos ou não e a de nos manter fora desses espaços. Nosso “stand point”, ponto de partida, como define Patricia Hill Collins, ou o nosso “só falar disso” nos permite refutar esse modelo e pensar outros mais plurais e democráticos. Não é possível falar de política, sociedade, arte, sem falar de racismo e sexismo.

Falar de questões que foram historicamente tidas como inferiores, falar de mulher, população negra, LGBT é romper com a ilusão de universalidade que exclui. A concepção de universal de quem está no poder é um dado ilusório. Não nos enganemos quando eles dizem que falam de temas universais e nós não. Eles estão tão somente falando de si próprios.

+ sobre o tema

Nunca desistir de lutar contra o racismo

Na sua coluna na UEFA.direct, a publicação oficial...

Sonho Olímpico

Nesta semana, começam as Olimpíadas no Rio de Janeiro....

Impedida de entrar em loja, delegada negra faz denúncia de racismo

A delegada Ana Paula Barroso foi impedida de entrar...

“É no trato com os índios que o Brasil se revela”, diz cineasta

Em entrevista a Maria Rita Kehl, diretor do documentário...

para lembrar

Pesquisa aponta aumento do número de denúncias de racismo no Distrito Federal

Pesquisa aponta aumento do número de denúncias de racismo...

Chris Brown é acusado de racismo

  Mais um escândalo aconteceu na vida do rapper norte-americano,...

Falabella é chamado para premiação negra depois de acusação de racismo

Nada como um dia após o outro. Após a polêmica...

Mulher é presa por injúria racial em Montes Claros

Uma mulher, de 45 anos, foi presa por injúria...
spot_imgspot_img

Se liga, meu irmão

Além de marcar mais uma festa da democracia, as eleições municipais de 2024 deixam claro e evidente que o antirracismo, apesar de previsto na Constituição Federal de...

Mães de vítimas denunciam assassinatos em Conselho da ONU

"Meu filho tinha 16 anos quando foi tirado de casa por 23 policiais militares no estado da Bahia, Brasil, em outubro de 2014", disse...

SP: Condomínio é condenado após mandar homem negro para entrada de serviço

O condomínio de alto padrão Quinta do Golfe Jardins, em São José do Rio Preto (SP), foi condenado a indenizar um homem negro em...
-+=