Carta de repúdio ao maracatu Aroeira

Por meio desta carta tornamos público o nosso repúdio à situação ocorrida no dia 25 de abril, durante a apresentação do Grupo Maracatu Aroeira, na Rua São Francisco, em Curitiba, quando um dos integrantes do grupo (um homem branco) utilizou de violência contra uma mulher negra, dando um “leve” toque com uma das baquetas, parte de um instrumento de percussão, com o argumento de que ela estava “atravessando” a apresentação. Posteriormente ao início da discussão que se gerou por causa disso, outro membro do grupo (uma mulher branca) utilizou um discurso elitista e autoritário proferido aos gritos de: “você sabe com quem está falando?”; “faz dez anos que estudo o Maracatu”, “sou branca de alma negra”; dentre outras colocações.

Do Coletivo de estudantes Negros e Negras UFPR

“Antigamente eles exploravam nossa mão de obra, nosso trabalho físico, agora eles exploram nossas ideias, a nossa cultura”. (Josias da Vila Monarca). Essa frase aciona uma indagação que nós negras/os fazemos toda a vez que situações como essa acontecem, rememorando uma espécie de apropriação indevida, em que uma mulher negra é deslegitimada por pessoas brancas sobre um processo cultural que faz parte da cultura afro-brasileira. Ser questionada sobre “atravessar” uma apresentação não deveria gerar agressões físicas e verbais com cunho racista e fundamentado em um discurso de autoridade.

De alguma forma, essa prática nos faz refletir sobre o perfil dos membros do grupo: em sua maioria universitárias/os, brancas/os e que se reúnem em prol da valorização de uma manifestação cultural tão rica para a sociedade em geral, sobretudo para sociedades como a curitibana que omite sua negritude. Mas é justamente aí que se revela o problema: ao propor a valorização de uma cultura, baseada em critérios de organização para não se “atravessar”, e o ataque a uma mulher negra que “atravessa” sua apresentação, onde ficam os princípios de valorização da cultura afro-brasileira? A teoria, em que brancas/os consideram-se “de alma negra” não se aplica à prática? O que é ser uma mulher negra, para o Maracatu Aroeira? O que é ser uma pessoa negra, para o Maracatu Aroeira?

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É ser branca/o (“de alma negra”) mas agredir uma mulher negra (de alma negra)?

É ser universitária/o (intelectual pesquisadora/or de Maracatu) e não ter condições acadêmicas de argumentar em favor do respeito a sua apresentação?

Esse tipo de apropriação afasta o Maracatu de seu lugar de origem que é a periferia e os bairros das cidades, espaços esses compartilhados sobretudo por pessoas negras. Um dos possíveis argumentos contrários a esse questionamento poderia ser o fato de que o Maracatu é aberto para todas/as, negras/os e não negras/os, e caso o perfil desse grupo não represente em sua composição a diversidade étnico-racial que se espera de grupos de manifestações culturais afro-brasileiros, é porque negras/os não querem.

Argumentar que a população negra não se insira no Maracatu “porque não quer”, além de representar uma estratégia confortável de defesa, revela-se simplista, considerando os espaços sociais ocupados por negras/os de periferia e o grupo em questão. Da mesma maneira, argumentar que a baixa representatividade de negras/os no Maracatu deve-se à ausência destes em Curitiba é retroalimentar um imaginário equivocado e racista de que a capital do Paraná é a Europa brasileira, não só pelas características climáticas, mas também por sua população. Tais argumentos apresentam-se inconsistentes e incoerentes diante dos dados apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que informa que somos 19,7% da população curitibana.

Reconhecemos que o Maracatu é extremamente necessário quando este faz conexão de fato com a cultura afro-brasileira como forma de resistência, como forma de resgatar o histórico de lutas e conquistas, quando este é direcionado ao empoderamento da população negra. Lembramos ainda que a apropriação cultural foi uma política que buscou ainda buscar apagar traços da cultura negra, tornando-os símbolos nacionais (samba, feijoada, capoeira, etc.) na tentativa de desmobilizar o fortalecimento da identidade da população negra e marginalizá-la ainda mais.

Com esse manifesto exigimos a devida atenção do grupo Maracatu Aroeira quanto a questões ligadas à apropriação cultural, ações racistas e todos os desdobramentos e implicações que estes apresentam na vida de negras e negros.

Desta forma, aguardamos uma resposta do grupo quanto ao ocorrido, uma vez que não se trata apenas do uso de algo pertencente à cultura negra, mas também de respeito a mulheres e homens negros e demais pessoas que se encontravam no momento da apresentação. Ficamos a imaginar quantas vezes essa cena de desrespeito pode ter ocorrido anteriormente pelo grupo ou por membros dele, uma vez que a cultura negra é tão rica, bela e cheia de significados que não deveria ser representada da forma como ocorreu na data em questão.

Assinam essa carta:

Cintia Ribeiro (Ciências Sociais UFPR)

Alan Felipe dos Santos (Ciências Sociais UFPR)

Nuno José (Direito UFPR)

Eduardo José de Araújo (História UFPR)

Brinsan N’tchala (Direito Unicuritiba)

Priscila Souza (Socióloga – UFPR)

Natália Luiza (Ciências Sociais UFPR)

Margoth Mendes da Cruz (Psicologia UFPR)

Daiane da Silva Vasconcelos (Psicologia UFPR)

Coletivo Sou Neguinh@ (UFPR)

Jorge Santana (Historiador – UFPR)

Watena Ferreira N’tchala (Engenharia Mecânica UFPR)

Angélica Roxinsky de Carvalho (Ciências Sociais UFPR)

Andressa do Rosário Damaceno (Gestão Ambiental UFPR Litoral)

Elisama Kissenia de Souza (Agronomia UFPR)

Kesia Samay de Souza (Engenharia Florestal UFPR)

Júlio Sérgio da Silva Monteiro (Educador Musical – UFPR)

Camila Maia (Ciências Sociais UFPR)

Débora Fidelis (Ciências Sociais UFPR)

Débora Cristina de Araújo (Doutora em Educação UFPR)

Otavio Luiz Costa (Ciências Sociais UFPR)

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