Chicotear negro pobre é permitido no país que celebra o racismo e a tortura

Um jovem negro foi despido, amordaçado e chicoteado por dois capatazes após tentar um furto de valor irrisório em um comércio em São Paulo

Por Leonardo Sakamoto, do Blog do Sakamoto

Leonardo Sakamoto. (Foto: RFI/Rui Martins)

Essa história, que poderia relatar o violento cotidiano do século 17, na verdade refere-se ao violento cotidiano do século 21. Na periferia da capital paulista, um rapaz de 17 anos, sem residência e catador de materiais recicláveis, foi torturado por dois seguranças após tentar furtar barras de chocolate de uma unidade do supermercado Ricoy. Isso não é novidade diante do genocídio da juventude negra em curso. Mas o chicote é cinismo puro.

Isso ocorreu em julho, mas por ter sido ameaçado de morte, ele ficou com medo de revelar o caso. Acabou prestando depoimento ao 80º Distrito Policial, na Vila Joaniza, apenas nesta terça (2). Estava acompanhado do advogado Ariel de Castro Alves, que faz parte do Conselho Estadual de Direitos Humanos. O delegado Pedro Luís de Sousa, estarrecido, abriu um inquérito para investigar. O mercado disse que repudia o fato e que os seguranças eram de uma empresa terceirizada, o que não ameniza em nada o ocorrido.

O caso ganhou as redes sociais após os próprios algozes gravarem imagens da sessão de tortura. Copiaram, dessa forma, o que fizeram os militares norte-americanos durante sessões de tortura conduzidas por eles na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, em 2004. Naquela ocasião, “cidadãos de bem” norte-americanos vibraram com as cenas. Por aqui, “cidadãos de bem” brasileiros não deixaram por menos: parte das postagens e mensagens comemorava que o jovem estava sendo punido. No vídeo tupiniquim, um dos que estão chicoteando o rapaz diz: “tô fazendo isso para não atrasar pro seu lado, pra não ter que te matar”.

Essa história me lembra de outra: Em julho de 2015, um homem negro de 29 anos foi linchado por moradores do Jardim São Cristóvão, em São Luís (MA). Segundo a Polícia Civil, ele havia tentado assaltar um bar, quando foi rendido, amarrado nu em um poste e agredido até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas. O rapaz poderia ser entregue à polícia para ser devidamente processado e pagar pelo seu crime. Mas o pelourinho, que canta alto na alma de muitos brasileiros, falou mais alto.

Rapaz linchado por multidão no Maranhão (Foto: Biné Morais)

Essa história também me lembra outra história: No dia 14 fevereiro deste ano, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, 19 anos, foi morto por Davi Ricardo Moreira Amâncio, segurança do supermercado Extra, do Grupo Pão de Açúcar, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ao “conter” o jovem negro, ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre ele. No vídeo, que circulou pelas redes sociais, testemunhas alertaram que Pedro estava “sufocando” e ficando “roxo”, mas a sessão de tortura continuou. Com parada cardiorrespiratória, foi socorrido pelos bombeiros e não resistiu. A mãe do rapaz presenciou a cena. Pedia para o segurança parar.

E mais outra: Januário Alves de Santana foi acusado de estar roubando um automóvel em uma loja do Carrefour, em Osasco (SP), em agosto de 2009. Por isso, foi submetido a uma sessão de tortura de cerca de 20 minutos. “O que você fazia dentro do EcoSport, ladrão?”, perguntaram, enquanto cinco pessoas davam chutes, murros, coronhadas, na sua cabeça, na sua boca. O carro era dele, comprado em suadas 72 vezes de R$ 789,44. Na cabeça dos seguranças do supermercado, um negro não poderia ter carro de bacana branco.

E mais outra: Domingos Conceição dos Santos foi baleado ao tentar entrar em uma agência do Bradesco em São Paulo, em maio de 2010. Ele usava um marca-passo e apresentou um documento comprovando isso, o que explicaria porque o detector de metais da porta giratória apitaria quando passasse por ela. Após uma discussão com o cliente, o segurança sacou a arma e atirou na cabeça do aposentado. Ele entrou em coma e teve morte cerebral constatada quatro dias depois. O funcionário do banco foi preso. Na época, a família afirmou que Santos foi vítima de racismo por ser negro.

E tantas outras histórias de violência semelhantes que é impossível contar neste espaço. É racismo estrutural. E é violência e tortura como resposta básica.

As histórias poderiam ser diferentes se a cor da pele também fosse. Mas preferimos dizer que não, até para dormirmos mais tranquilos à noite, negando o preconceito que nos impregna da epiderme até os ossos. Daí, quando professores decidem discutir, na sala de aula, a razão pela qual jovens negros são as principais vítimas entre milhares de mortes violentas anuais, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, defensores de uma Escola Sem Tutano ameaçam processar e morder, dizendo qie isso é ser “ideológico”. Na opinião de uma parte considerável do Brasil, não há racismo por aqui. Apenas “coincidência” e “azar”.

A redução de negros a instrumentos descartáveis de trabalho e a negação de sua cidadania está na fundação de nosso país, portanto, essa violência não é de agora. Não é novidade para quem nasce negro e pobre. Mas a sensação de impunidade dos capatazes é potencializada toda vez que governantes dizem ao Brasil que ele não precisa se preocupar com as consequências de seu passado. Em julho de 2018, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, por exemplo, o então pré-candidato Jair Bolsonaro, questionado sobre a forma que pretendia reparar a dívida histórica da escravidão, respondeu: “que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida”.

Temos lidado com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não entendermos, refletirmos, discutirmos e resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia com o país aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

A celebração do golpe militar e tudo o que ele representa não ocorre apenas a cada 31 de março por gente inconsequente, mas retorna toda vez que se mata e se agride, não como um infeliz efeito colateral da proteção da população, mas como execução de uma política de limpeza e contenção social. Ou quando uma parcela da sociedade pensa “bem feito” ou “quem mandou se meter com a coisa errada” diante de imagens de corpos de jovens, ligados ao crime ou não, sangrando, aqui e ali, em uma comunidade após a “justiça” ser feita. Ou o corpo de um jovem negro sendo chicoteado, uma, duas, três, várias vezes. E a cada chicotada, curvar-se de dor pela mão de seguranças que se autopromoveram a promotores, juízes e carrascos ao mesmo tempo.

Como o supermercado indenizará o rapaz que foi chicoteado em suas dependências? Como as outras empresas citadas acima agiram para que isso não voltasse a acontecer? Como um país quer ser decente se uma barra de chocolate vale mais que a dignidade? Como querer ter um futuro se milhares de pessoas celebram, nas redes sociais, a tortura de um jovem que cometeu um erro? Perguntas difíceis. A única certeza é que chicotear negro pobre é permitido no país que tornou a execução de jovens negros uma tarefa do cotidiano.

Leia também: Polícia investiga tortura contra jovem que teria furtado chocolate em supermercado da Zona Sul de SP

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