Circuncisão Feminina: “Se a cultura fere o seu corpo, por que preservá-la?” – Por: Natalia da Luz

Nairóbi, Quênia – A cultura é o que identifica grupos diferentes dentro de um planeta tão multifacetado. Em 28 países africanos, a circuncisão feminina é uma prática recorrente e um ornamento que é parte da cultura. Diante das consequências para a saúde física e psicológica da mulher, parte da sociedade se levanta para erguer a bandeira do direito de abandonar essa tradição.

– Hoje, Dia Internacional de Tolerância Zero para a Mutilação Genital Feminina, serve para lembrar que o melhor que podemos fazer é informar e mostrar todas as consequências das modalidades da circuncisão feminina, deixando que as mulheres e a sociedade façam a sua escolha. Essa deve ser uma decisão delas! – conta a enfermeira e ativista Fardhosa Mohamed em entrevista ao Por dentro da África, enquanto atende em sua clínica mulheres com complicações provocadas pela circuncisão feminina.

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À direita, Fardhosa com uma mãe e se bebê – Isiolo – Quênia – Foto: Natalia da Luz À direita, Fardhosa com uma mãe e seu bebê – Isiolo – Quênia – Foto: Natalia da Luz

Fardhosa é de origem somali, grupo que valoriza a circuncisão feminina e de onde dificilmente as meninas conseguem se esquivar da tradição que associa a circuncisão ao ato de purificação. Na cultura dela, geralmente, a circuncisão é feita por volta dos 6 anos de idade.
De acordo com o relatório do Country of Origin Information Center sobre Mutilação Feminina no Sudão e na Somália, mais de 90% das meninas da Somália e do Norte do Sudão são infibuladas, a modalidade mais severa para a saúde da mulher, dentre os quatro tipos classificados pela Organização das Nações Unidas como Mutilação Genital Feminina.

Mutilação Genital Feminina
O termo Mutilação Genital Feminina foi amplamente adotado em 1990, na Conferência Regional do Comitê Inter-Africano sobre Práticas Tradicionais que Afetam a Saúde das Mulheres e Crianças, realizada na Etiópia.

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Mapa sobre a circuncisão feminina Mapa sobre a circuncisão feminina

Em 1997, a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) emitiram uma declaração conjunta sobre a Mutilação Genital Feminina que descreveu as implicações da prática para a saúde pública e direitos humanos.

De acordo com a OMS, a prática afeta cerca de 140 milhões de mulheres e meninas em todo o mundo. A cada ano, estima-se que mais de três milhões de meninas corram o risco de serem submetidas à prática.

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Marcha contra a FGM em Nairóibi – Foto: Natalia da Luz Marcha contra a FGM em Nairóbi – Foto: Natalia da Luz
As modalidades da circuncisão feminina têm sido, há décadas, reconhecidas como um perigo para a saúde física e psicológica da mulher. Nas zonas rurais, o procedimento ainda é realizado, na maioria das vezes, sem anestesia e precauções anticépticas. Nas áreas urbanas, o ritual é comandado pelas circumcisers no chão de quartos escuros ou, nos casos de famílias de classe social elevada, em ambulatórios, hospitais ou clínicas. Neste caso, a tradição revela um peso muito maior do que a classe social e nível de instrução.

Os que defendem a prática fazem-na baseados em justificativas culturais e morais. Apesar da influência, a religião não parece ser diretamente relacionada ao costume, já que as modalidades são praticadas indiferentemente por muçulmanos, judeus, cristãos e animistas. A associação com a moralidade e com o papel da mulher na família e na sociedade acompanham as justificativas e a defesa da prática. Não seguir tal tradição poderia condenar a mulher a uma vida de discriminação, de rejeição pela própria comunidade e família.

Conheça os tipos

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TIPO I
O tipo I, chamado de Sunnah, mais praticado entre os muçulmanos, é caracterizado pela excisão do prepúcio do clitóris e possível redução do mesmo.
O tipo II é chamado de excisão e consiste na retirada total do clitóris e, algumas vezes, remoção parcial ou total dos pequenos e grandes lábios.

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TIPO II
O tipo III é conhecido como circuncisão faraônica ou infibulação e consiste na extirpação do clitóris, dos grandes e pequenos lábios. Após esse procedimento, a vagina é costurada com agulha e linha ou com bush thorn (uma planta com um enorme espinho encontrada nas áreas rurais) deixando um espaço mínimo para a saída da urina e do fluxo menstrual.

Há ainda o tipo IV, usado para agrupar todas as outras modalidades de alteração da genitália.

– Quando falamos de infibulacão, depende do quanto a vagina é “costurada”. Com a infibulação, as meninas ficam com a pernas juntas, amarradas e só depois de uma ou duas semanas, com a vagina toda fechada, que ela é desamarrada – descreve Fardhosa sobre o tipo de circuncisão que ela mesma vivenciou.

A enfermeira lista algumas complicações como sangramentos, anemia, cistos, abcessos, quelóides, inflamações. No caso das mães de primeira viagem, muitas vezes, ela (a médica) não tem acesso ao bebê e precisa abrir a vagina. Outro problema para as mulheres infibuladas estaria no ato sexual…

– Meu marido tentou durante sete dias, mas não conseguiu me penetrar. Então, eu fui a uma parteira para ela me abrir. Só depois disso, ele conseguiu – disse ao Por dentro da África a somali Mashua, lembrando que esta condição é muito comum entre as mulheres infibuladas e que levam meses e até anos para consumarem o casamento.

Missão de vida
No primeiro andar de sua casa, a médica de 51 anos criou, em 2003, a Safeway Medical Clinic, uma pequena clínica de seis salas em uma comunidade de refugiados de Nairobi. Esses moradores tiveram que deixar seus respectivos países por motivos de crise econômica, conflitos sociais ou perseguição politica e encontraram em Eastleigh um lugar para viver entre conterrâneos.

Em meio à precariedade na clínica, que sobrevive de doações (de pessoas e de organizações), Fardhosa provoca uma verdadeira revolução ratificando que a vontade é a ferramenta transformadora de que o mundo precisa.

Assista ao clipe do documentário produzido pelo Por dentro da África no final da página
Com uma equipe de 12 auxiliares, ela coordena campanhas de vacinação semanais, faz partos, realiza simples operações (em mulheres que tiveram complicações por conta da circuncisão) e cuida de problemas como inflamações, malária e diarréia.

– O nosso foco é nas mães e crianças, mas atendemos e fazemos o que estiver ao nosso alcance para cuidar de qualquer um. Nós também montamos campos de atendimento em diferentes áreas da comunidade para ir ao encontro dessas mulheres que, de alguma forma, ainda sofrem com as consequências da circuncisão feminina – explica a enfermeira, completando que o governo envia vacinas, enquanto outros parceiros, remédios, que ela e sua equipe recomendam para os pacientes.

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Ruas de EatleighRuas de Eatleigh
Eastleigh é conhecida como Little Mogadíscio (Mogadiscio é o nome da capital da Somália) pela quantidade de somalis. Vale ressaltar que o termo somali não está apenas ligado à nacionalidade, ele diz respeito a um grupo étnico que habita o Chifre da África, incluindo Somália, Etiópia, Quênia e Djibouti.

O bairro foi fundado em 1921 e funcionava como um centro para os asiáticos e africanos de elite que trabalhavam como funcionários, construtores ou sapateiros. Eastleigh era, originalmente, um grande enclave asiático queniano até a independência da Inglaterra, em 1963. Nos últimos anos, o bairro foi dominado e quase exclusivamente habitado por imigrantes somalis.
– Muitos daqui, principalmente as mulheres, não têm condições de irem ao hospital (mesmo o público, já que são refugiados). Ontem mesmo, operamos uma mulher que estava há 10 anos com um cisto por conta de uma inflamação causada pela infibulação. Situações como essa vemos o tempo inteiro por aqui…

Parte da cultura

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Marcha contra a FGM em Nairóibi – Foto: Natalia da Luz Marcha contra a FGM em Nairóbi – Foto: Natalia da Luz

A prática milenar que, para alguns, é chamada de tortura, para outros, é um costume comandado pela família e aceito pela comunidade como parte da cultura. Fardhosa diz que, na Somália, é impossível ver uma mulher com 17 anos sem ser circuncidada.

– Isso não é mutilação. Esse é um costume que veio dos ancestrais de nossos ancestrais. Quem somos nós para questionar algo que atravessou tantas gerações, que existe há tanto tempo? É o que é certo fazer”, disse Omar Hassain, ao Por dentro da África.

Algumas justificativas para a prática são a purificação do corpo feminino, preparação para o casamento, controle da sexualidade, garantia da virgindade e proteção da menina contra “possíveis estupradores” no deserto (no caso da infibulação em povos nômades). Sobre o corte do clitóris, uma razão muito ouvida é a garantia de que a mulher não se tornaria prostituta e o mito de que o clitóris inteiro viraria um pênis.
– Nós nunca vimos uma mulher que não tivesse sido cortada. Elas precisam cortar, senão, como dizia a minha avó, o clitóris cresce e vira um pênis – disse Hadija Halake em entrevista ao Por dentro da África.

A participação dos homens na reflexão

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Marcha contra a FGM em Nairóibi – Foto: Natalia da Luz Marcha contra a FGM em Nairóbi – Foto: Natalia da Luz

A circuncisão é, muitas vezes, ordenada pela mãe, avó ou tias e realizada pelas circumsicers ou parteiras. É um processo que envolve diferentes gerações de mulheres e uma relação de obediência às mais velhas. Apesar de os homens não participarem ativamente do ritual, eles têm uma enorme importância para a reflexão da prática nos dias de hoje.

– Muitas mulheres faziam porque queriam garantir o casamento, um bom marido. Desta forma, os homens participavam involuntariamente. Antes, muitos homens só queriam se casar com mulheres circuncidadas, mas hoje é possível ver depoimentos opostos e uma preferência pela mulher “inteira” – conta Daud Dhimil, jornalista somali que não apoia a prática.

Para Mike Tambo, que trabalha como diretor de projetos na clínica Safeway, o homem estruturalmente influencia os âmbitos em que as mulheres africanas atuam, e as mulheres são as maiores vítimas da circuncisão feminina.

– Tendo em conta que as comunidades africanas são de origem patriarcal, pela natureza, e que o homem está no mais alto escalão do poder e tomada de decisão, ele é o melhor colocado para dirigir esforços de intervenção de modo a erradicar a prática.

Legislação, ativismo e reflexão

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Fardhosa 2A experiência de ter passado pela circuncisão feminina e de vivenciar diariamente os problemas de saúde causados pela prática dão à Fardhosa uma visão da real dimensão entre o combate e a permanência da prática.

Apesar do ativismo da própria população, dos muitos esforços de organizações nacionais e internacionais, das leis (no Quênia, a prática é proibida por lei desde 2011 com punição de 5 anos para os pais e a circumciser que forem denunciados), a circuncisão acontece dentro das casas. Em uma única noite, durante a nossa visita à Eastligh, soubemos que seis meninas foram circuncidadas na vizinhança.

Esse episódio em um único bairro é uma prova de que, mesmo com a lei The Prohibition of Female Genital Mutilation em vigor, o ritual da circuncisão permanece. Na lei está escrito: “O Parlamento proíbe a prática da mutilação genital feminina para proteger contra violação da integridade física ou mental a pessoa submetida ao ritual. A mutilação genital compreende todos os procedimentos envolvendo a remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos, lesões nos órgãos genitais femininos, ou qualquer procedimento prejudicial para a genitália feminina, por razões não-médicas.”

O fato de o governo banir oficialmente a prática é um grande avanço, mas ele ainda encontra muitos obstáculos na implementação e cumprimento da lei.

– Todos nós sabemos que isso acontece em todos os lados. Muitas vezes, a mãe vai até preferir ir para a cadeia em vez de deixar a sua filha livre da circuncisão. O melhor que temos a fazer é mostrar as consequências e dizer que isso não está na religião! Se um costume fere o seu corpo, por que defender essa cultura? – pergunta Fardhosa.

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Fonte: Por dentro da África

 

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