Surgida a partir de um TCC, biografia conta a trajetória de Clementina que só foi “descoberta” depois dos 60 anos e deixou a raiz africana em sua obra musical. Morte da cantora completa 30 anos em 2017
Clementina gravou primeiro LP aos 65 anos e despertou, segundo Paulinho da Viola, o valor do povo negro na formação da nossa cultura (Reprodução/RBA)
São Paulo – Era a noite de 7 de dezembro de 1964, e o palco era do Teatro Jovem, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Clementina usava um vestido bordado de rendas claras, que custara três vezes o valor de seu salário como doméstica.
Naquela manhã, Clementina de Jesus acordou tomada pela ansiedade. Aquela “nega” trabalhadora, prestes a completar 63 anos e que tinha passado a vida cantando entre amigos, subiria pela primeira vez em um palco para cantar profissionalmente.
Antes de entrar em cena, tomou uma garrafa inteira de Cinzano, conforme revelou anos depois em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS).
A garganta continuou seca do mesmo jeito. Aí tocou a sineta. Tocou uma e eu, firme. Tocou duas, eu dei mais um gole e me benzi. Tocou três e eu me benzi pra baixo, pra cima e entrei. Entrei e não vi nada. Soltei a voz como se estivesse em casa e foi aquele sucesso.
Ela era acompanhada por César Farias ao violão. Exímio violonista e pai de um rapazinho que também estava no palco, Paulo César, o Paulinho da Viola, além de Elton Medeiros na percussão. Todos testemunhavam o “nascimento” artístico de Quelé, em uma noite aberta pelo jovem talento Turíbio Santos, violonista clássico, em projeto chamado O Menestrel.
A iniciativa visava a unir o erudito e o popular, conforme explicou, no texto de apresentação do show, o produtor Hermínio Bello de Carvalho, responsável pelo “descobrimento” de Clementina, a quem passaria a chamar de mãe. Naquela época, ela ganhava a vida como empregada doméstica.
“Nossa ideia é aproximar os dois públicos, da música popular e erudita, e dar-lhes o melhor de cada gênero num só espetáculo (e invoco o exemplo de Bernstein apresentando Louis Armstrong). Temos sobre a matéria um entendimento eclético, porque sabemos que a música não é arte unilateral, nem privativa de castas favorecidas economicamente.”
Contada em detalhes, essa história, entre tantas, está no livro Quelé, A Voz da Cor: Biografia de Clementina de Jesus, lançada em janeiro (editora Civilização Brasileira, do grupo Record, 384 páginas). Uma obra surgida de um trabalho de conclusão de curso (TCC) de quatro estudantes da Universidade Metodista, em São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista: Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz. Três deles nem tinham nascido quando Clementina morreu, em 19 de julho de 1987, aos 86 anos: Felipe e Raquel têm 26 anos e Luana está com 27.
Janaína era uma menina de 5 anos, que tempos mais tarde conheceria o LP Canto dos Escravos e se encantaria pela voz poderosa daquela senhora, então com 81 anos. A apaixonada pesquisa consumiu seis anos, consulta a aproximadamente 600 edições de jornais e a variadas fontes, mais de 40 entrevistas, 40 viagens.
“A história e a cultura do povo banto transmitidas oralmente pela mãe fez de Tina uma mulúduri – herdeira –, sem imaginar que o seu futuro lhe reservava a função de transmitir e perpetuar os cantos ancestrais de matriz africana”, escrevem os autores. Clementina, chamada de Tina em casa, começou a cantar em coro de igreja aos 7 anos, em Valença, interior do Rio, onde nasceu, em 7 de fevereiro de 1901. Filha de Paulo, pedreiro e carpinteiro, e Amélia, parteira e rezadeira.
Entre seus muitos méritos, o livro ressalta as origens de Clementina, que bem pequena ouvia os cantos trazidos pelos escravos africanos. Assim ela falou ao MIS sobre sua mãe:
Ela estava lavando roupa, eu ali por perto. Lavando e cantando, e de vez em quando ela dizia: “Tina, vá acender esse cachimbo”. E eu respondia: “Sim, senhora”. Botava fumo, acendia e trazia pra ela, e ela estava cantando. Assim que eu aprendi uma coisinhas gostosas que ela cantava. A roupa batia na prancha, marcando o passo do canto, espirrando água e sabão na minha cara. E eu acocorada, cantando baixinho, para aprender com a mãe.
Os quatro autores contam que Clementina foi criada “sobre duas distintas vertentes: o catolicismo e as religiões de matrizes africanas, como o candomblé, presente em muitos de seus cantos”. O pai ajudou a construir a igreja de Carambita, bairro de Valença onde a família morava e de onde sairia em 1908 para morar no Rio, em Jacarepaguá.
Carpinteiro e quase sem instrução, Paulo adorava receber os amigos para encontros sempre animados por sua viola. A pequena Tina gostava de acompanhá-lo na cantoria de modinhas, jongos e cantos de trabalho, reforçando a presença de valores religiosos africanos mesclados à fé católica nos alicerces da família.
Janaína conta que se impressionou com o disco Canto dos Escravos, que tinha, além de Clementina, o sambista paulista Geraldo Filme e a carioca Tia Noca. “O que mais fiquei encantada foi com a ancestralidade dela. Ela cantava de memória, pela cultura oral”, disse no programa Sem Censura, da TV Brasil, no último dia 26 de janeiro.
Elo perdido
As palavras do pesquisador Jairo Severiano reforçam essa visão. “Com seu canto vigoroso, rascante, inusitadamente grave e suas canções primitivas, impregnadas de negritude, a neta de escravos e pretos forros Clementina de Jesus, a Quelé, é a prova cabal da presença da África na MPB”, escreveu, ao receber um exemplar do livro sobre Clementina.
Acrescenta Severiano: “Nas palavras do historiador Ary Vasconcelos, ‘ela tem para a música popular brasileira uma importância que presume corresponder na antropologia, a do achado de um elo perdido’. E é o casamento dessa presença africana, especialmente na rítmica, com melodia e harmonia de inspiração europeia que constitui o aspecto mais fascinante do samba, nosso mais importante gênero musical. Uma caraterística, pois, só possível pela participação de figuras como Quelé, Donga e Pixinguinha em sua formação”.
Certidão de batismo, assinada a seis meses de sua morte, aos 86 anos. Felizmente sua voz foi descoberta duas décadas antes
O primeiro disco, Clementina de Jesus, é de agosto de 1966, quando a cantora já estava com 65 anos. Como se registra no livro, lá estão samba, cantos de pastorinhas, batucadas… E os cantos da infância. Para que isso acontecesse, foi decisivo o encontro entre Hermínio Bello de Carvalho e Clementina, em 1964, na Taberna da Glória, no Rio, aos pés do outeiro que leva o nome da padroeira. Depois de alguns desencontros, o poeta consegue se aproximar da cantora. Ela pede demissão do trabalho doméstico, para espanto da patroa, e estreia no final daquele ano, no show O Menestrel.
Dali em diante, não para mais. A partir de março de 1965, participa do mítico espetáculo Rosa de Ouro, no mesmo Teatro Jovem, produzido por Hermínio, com gente como Elton Medeiros, Araci Cortes e Paulinho da Viola. No ano seguinte, vai a Senegal, para o I Festival Mundial de Artes Negras, e se destaca em uma apresentação em um estádio. Na mesma viagem, canta no Festival de Cannes, na França. Ali, onde estava hospedada, Clementina conheceu uma musa italiana.
Foi tudo muito bom, cantei aquelas coisas que sempre canto e estava no mesmo andar do meu apartamento aquela mulher, a mais bonita do mundo… como é mesmo o nome dela? A Sophia Loren, não é? Eu vi que ela é mesmo muito bonita, mas é bruta, sabe? Ela tarraco, tarraco, tarraco, tratava assim mesmo o marido.
“Vai dar galho”
São várias histórias, como a de como Clementina conheceu Albino Corrêa Bastos da Silva, o Albino Pé Grande, que seria o seu grande amor. Integrante da Unidos da Riachuelo (bairro da zona norte carioca) e depois portelense declarada, ela estava no Morro da Mangueira quando viu Albino, 10 anos mais novo, e pensou: “Que mulato bonito!”. Era 1938, e Clementina tinha uma filha, Laís, de um namorado que não assumiu o relacionamento. Ao jornalista Millôr Fernandes, d’O Pasquim, ela contou sobre o início do namoro, bem ao seu estilo direto, em entrevista resgatada no livro.
“É, vai dar galho esse negócio”, eu disse. Chamei ele e falei: “Olha, meu amigo, meu caso é esse: se gostar de mim, gosta, se não gostar, não gosta. Vou ser sincera com você. Você trabalha?” Ele disse que trabalhava, sim. Na Estrada de Ferro Central de brasil. Boas falas! E eu: “Porque eu trabalho, meu filho. Eu não quero ninguém pra ficar nas minhas costas não. Você é bonito e eu sou uma crioula e coisa e tal, morou? Resultado, estamos juntos há 37 anos. Casadinhos, civil e religioso.
Clementina, que acabou se aproximando da verde-e-rosa, e Albino – que de ferroviário passaria a estivador – ficaram juntos até a morte dele, em junho de 1977. Os seis últimos anos foram particularmente difíceis, depois que Albino sofreu um infarto e passou a precisar de cuidados constantes. Tiveram uma filha, Olga, nascida em 1943 (em 1940, o recém-nascido Euclides morreria em pouco tempo, em consequência de uma pneumonia; Laís, a primogênita, morreu em 1974, depois de sofrer um acidente vascular cerebral).
Lançada pelo “filho” Hermínio em 1964, Clementina terá atividade intensa nas décadas seguintes. Em 1968, por exemplo, grava o disco Gente da Antiga, com Pixinguinha e João da Baiana, participa do espetáculo Mudando de Conversa, que viraria LP, com Nora Ney e Ciro Monteiro, e lança Fala Mangueira!, com pesos pesados da escola: Cartola, Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça, além da cantora Odete Amaral. Em 1971, em entrevista ao Correio da Manhã, ela reclamaria que o carnaval estava ficando diferente, “só tem pula-pula, ninguém sabe sambar”.
Ainda viriam, entre outros álbuns, Clementina, Cadê Você? (1970) e Marinheiro Só, em 1973, no mesmo ano em que participam da gravação do LP Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento, na faixa Escravos de Jó, podada pela censura – três anos depois, em Geraes, gravaria com Milton a impagável Circo Marimbondo.
O disco Marinheiro Só, faixa-título de um samba de roda do Recôncavo Baiano recolhido por Caetano Veloso, tem a presença marcante do percussionista Naná Vasconcelos. Assim ele se refere à cantora:
Clementina é a prova de que a África é a espinha dorsal da nossa cultura. A música dela é realmente de corpo e alma.
Também presente no álbum, assim Paulinho da Viola se refere a Quelé, um apelido que ela recebeu ainda na infância, de um vizinho em Valença:
Essa figura cantando curimas, cantando pontos, cantando sambas de partido-alto, acho que nunca tinha acontecido na nossa música. O impacto que isso provocou fez com que muita gente tivesse uma ideia, a partir de então, da importância dos artistas e do povo negro na formação da nossa cultura.
Fúria após 13 horas de estrada
Muita gente achou que Clementina pararia depois da partida de Pé, como ele era chamado carinhosamente. Mas ela continuou na estrada. Literalmente. Um mês depois, em julho de 1977, Milton reuniu amigos para uma apresentação em sua Três Pontas, em Minas Gerais – uma praça chamada Travessia havia sido inaugurada diante da casa de seus pais. Muitos amigos. Quelé foi de carro, do Rio até Três Pontas, com Chico Buarque e Francis Hime. Segundo relato de Milton, a viagem durou duas vezes mais tempo que o previsto, o que deixou a cantora furiosa.
Eu lembro que, quando ela chegou, desceu do carro brava, mas muito brava: “Vocês dizem que são seis horas de viagem. Foram 13 horas! Não se pode fazer isso com uma velha”. Aí eu olhei pro Chico: “Você demorou 13 horas pra chegar aqui?”, e ele respondeu: “A estrada é muito comprida”. E eu: “Chico!? Onde vocês pararam por essa estrada?”
Chico e Francis acabariam confessando que o roteiro teve várias paradas para abastecimento. Não exatamente do carro.
É também de 1977 o lançamento de um disco de Clara Nunes (As Forças da Natureza) que traria uma faixa que se tornaria, possivelmente, a mais conhecida canção a falar da própria Clementina. Com refrão inconfundível, P.C.J (Partido Clementina de Jesus) foi composta por Candeia.
Não vadeia, Clementina!
Fui feita pra vadiar!
Não vadeia, Clementina!
Fui feita pra vadiar! Eu vou!
Vou vadiar, vou vadiar, vou vadiar, eu vou
Ela também ficou brava durante as gravações de Clementina e Convidados, em 1979. Irritou-se com as exigências de Fernando Faro, responsável pela produção, conforme ele mesmo contou, com humor. Foi o primeiro álbum sem a presença de Hermínio.
Clementina certa vez ficou tão irritada que ameaçou, ao final das gravações, me presentear com uma feijoada com veneno.
Canto dos escravos, canto final
E assim foi Clementina, já com a saúde abalada após sofrer um derrame, em 1973, e tendo de cuidar do seu querido Pé. A sua última aparição em estúdio foi em 1985, na gravação da trilha sonora do filme Chico Rei, de Walter Lima Jr. Ela interpretou Quilombo de Dumbá e Chico Reina, cantos de origem religiosa, como lembram os autores do livro.
Naquele 1985, Quelé tinha uma filha, sete netos, seis bisnetos e dois tataranetos. Um show no Circo Voador, no Rio, foi feito para ajudá-la, como se lia em um folheto: “Ela gostaria de ganhar como presente a linha de seu telefone, cortada por falta de pagamento”. E também reclamava de calotes de empresários.
Bem antes disso, em 1979, com constantes problemas financeiros, Clementina escreve uma carta (reproduzida no livro) ao ministro da Previdência, Jair Soares, pedindo aposentadoria como cantora. O texto é ilustrativo das relações entre o povo e o poder público no Brasil.
A nêga Clementina de Jesus já passou por muita coisa na vida.
E hoje, para viver, beirando os 80 anos, necessita ainda se locomover por esse Brasil inteiro fazendo a única coisa que ainda pode: cantar.
Mas a nêga véia está cansando, seu Ministro. O que me dá forças prá prosseguir é essa juventude maravilhosa, que me recebe de braços abertos prá todo lugar onde vou.
Depois de trabalhar muitos anos como doméstica, com marido dando duro na estiva, me sobra bem pouco para viver, prá dar sustento aos meus netos.
No final, conta que tem outros na mesma situação difícil:
Pois é, doutor Ministro: a nêga véia e muitas outras pessoas do nosso meio estão no mesmo pagode.
A resposta, dois dias depois, é protocolar, anotam os biógrafos.
Em 1982, Clementina participa de um LP especial, o 11º e último de sua carreira. O Canto dos Escravos, com Geraldo Filme e Tia Doca, se inspirava no livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, de Aires da Mata Machado Filho, publicado em 1943, e pretendia reproduzir cantos dos trabalhadores em Diamantina. O disco, do selo Marcus Pereira, foi gravado em 45 dias. O produtor Marcus Vinícius de Andrade reparou na memória de Quelé.
Os africanos têm um ditado assim: toda vez que morre um velho negro, é uma biblioteca que vai embora.
Clementina guardava cantos aprendidos na infância com sua mãe. Mas não conseguia memorizar uma letra aprendida minutos antes. Sofreu para concluir sua parte em O Canto dos Escravos, com ajuda do produtor Marcus Vinícius e do percussionista Papete. E prosseguiu de show em show, até 1987 – há registro de uma apresentação, como convidada do cantor Badu Bisou, em 24 de maio, no bairro do Méier, zona norte do Rio. Menos de um mês depois, sofre novo derrame – o quinto – e fica internada até 19 de julho, um domingo, quando morre, às 2 da manhã.
Quelé não queria ficar parada, queria cantar. A capa do livro é ilustrativa: mostra uma animada Clementina no baile Rosa de Ouro, em 18 de fevereiro de 1966, no tradicional Hotel Glória, em comemoração aos 77 anos do cordão carnavalesco. No início da carreira, 63 anos completados, Quelé, em entrevista à revista Fatos & Fotos, sabia que o sucesso não mudaria nada: “Serei sempre a personagem que está aqui. Só não vou fazer mais salgadinhos e doces pra fora, coisa que só fazia pra ajudar na despesas”.
“Os jovens biógrafos fugiram dos lugares-comuns e abordaram o real significado de Quelé para a nossa cultura, escavacaram suas raízes africanas e também a importantíssima questão da oralidade: tudo que aprendeu com a mãe já era a herança musical que a ela foi passada por seus antepassados. Canções, portanto, centenárias. E meu trabalho era registrar aqueles tesouros”, escreveu Hermínio. “Respondo, sempre, repito, que nunca descobri coisa alguma, apenas exercia a arte de prestar atenção.”
Os quatro estudantes prestaram muita atenção e amplificaram uma voz do povo, que fez emergir cantos ancestrais.