Pai e filha, os atores Antônio e Camila Pitanga falam sobre a política e a história do negro no Brasil e sobre o documentário biográfico ‘Pitanga’
porLarissa Ibúmi Moreira no Carta Capital
Marcando sua estreia como cineasta, Camila Pitanga esteve na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes para a exibição do aclamado Pitanga, documentário dirigido em parceria com Beto Brant, que conta a trajetória artística, política e filosófica de seu pai, o também ator Antônio Pitanga, em conversas descontraídas com seus amigos, ex-amores e companheiros de profissão.
Projetado em praça pública, no histórico Largo das Forras, o filme sensibilizou a plateia, fez rir e inspirar, alçando o prêmio de melhor longa-metragem pelo júri popular. Está previsto para estrear nos cinemas em abril deste ano.
Os Pitanga, pai e filha, conversaram com CartaCapital sobre o documentário, a questão da mulher negra e a política e a história do negro no Brasil. Confira:
CartaCapital: No documentário, você afirma que negros e mulheres devem se unir, pois compartilham um lugar comum de opressão nesta sociedade. Considerando que a mulher negra sofre duplamente pelo racismo e pelo machismo, como vocês veem o papel do homem negro na luta das mulheres negras?
Antônio Pitanga: Por que não ser aliado? Se acontecer alguma revolução cultural ou social, ela será feita por homens negros e mulheres negras. Por que eu vou ser superior, porque sou homem? Essa cultura machista foi esculpida pelo colonizador branco. Não é minha, não é nossa. Tenho a certeza absoluta que se trata de uma pobreza intelectual e de sentimentos quando o negro não entende a mulher negra e quer fazer dela exatamente o que o branco faz com ele.
Por isso eu entendo minha mãe, Maria da Natividade. Filha e neta de escravas, ela tinha um comportamento de jamais abaixar a cabeça – e trabalhava pros brancos sem salário. Não é porque ela está como uma serviçal que entendia seu potencial e sua riqueza intelectual. Tudo de ruim foi colocado para nós e vamos querer dominar a mulher negra, fazer o que o branco faz com a gente?
Nossa contribuição nessa sociedade brasileira é muito maior. Essa sociedade branca, que não reconhece a gente, bebe, come e dança a nossa cultura. Até na maneira de se expressar, tudo vem de nós. A formação do homem vem da África. Mas temos dificuldade de entender.
Camila Pitanga: No documentário, a personagem da Léa Garcia fala “eu não vou ser escrava nem de branco, nem de negro”. Infelizmente, essa cultura escravocrata não é só uma relação de submissão e de opressão do branco sobre o negro. Muitas vezes, ela é também mantida na relação do negro com o negro e do negro contra a negra.
CC: Antônio, você viveu um período no continente africano, em missão cultural. Como essa experiência se refletiu em sua vida enquanto um artista negro brasileiro?
AP: A África sempre foi um desejo. Vim de uma família muito pobre e não entendia, quando criança, que teria essa chance de ir para lá. Quando enveredei para o mundo artístico, já comecei a enxergar a possibilidade de isso acontecer.
Escolhi uma profissão que é uma janela para o mundo. Os artistas, todos éramos considerados marginais. Eu já era perseguido e já compreendia o preconceito da frase “é negro e ainda vai ser artista?”. Escolhi “vou por ali”, contra esse sistema.
Eu não fui para Europa, como tantos amigos que tiveram que sair do país em 1964. Escolhi o exílio na África porque queria saber de qual África eu tinha vindo. Tinha noção de que a minha parte e da minha família foi queimada pelo Rui Barbosa. Aqueles papéis que eu poderia buscar, eu não tinha mais.
Saí do Brasil pela porta da frente, em missão cultural, em pleno governo Castelo Branco, porque tinha uns fãs no Itamaraty que admiravam o nosso trabalho.
E eu escolhi passar quase dois anos caminhando por alguns países que tivessem o dialeto, a língua, as danças, a culinária, mais próximos e que eu pudesse entender e me achar. Escolher a África já é uma atitude política.
Com o apoio dos camaradas do Itamaraty, que eram fãs do Cinema Novo, consegui exibir três filmes, Barravento, Ganga Zumba e Esse Mundo é Meu para os presidentes de países como Gana, Nigéria, Senegal. Queria mostrar também como os negros brasileiros se comportavam e como estavam.
Era também pra eles uma revelação primeira. Com a luta pela consciência dos seus direitos e para expulsar o colonizador, não tinham tempo pra ainda entender o Brasil.
Fiz essa caminhada para entender o ser Pitanga, de onde essa família tinha saído, já que nós viemos de vários carregamentos. Viajei para estudar, debater, mostrar o negro brasileiro e como nós estávamos reagindo à opressão. Tive muitos problemas com embaixadores da África Branca, que não entendiam o que eu estava fazendo ali.
CC: Nessa África revisitada, o que você descobriu?
AP: Eu achava que vinha da Nigéria e realmente sou de lá, de Daomé, me achei ali. Isso me humanizou. Já tenho 77 anos e fico tentando entender essa incapacidade da raça negra de não entender o coletivo.
Meu ídolo em toda essa formação do Brasil é o Luiz Gama. A gente tem que entender a trajetória desse rapaz, advogado, filho de Luisa Mahin e de um fidalgo. Com 10 anos, ele é colocado na mesa de jogo e faz parte de um lote [de escravos] que vai para o Rio de Janeiro. Era essa criança, nascida livre e tornada escrava.
Como rábula [nome dado a quem advoga sem ter diploma], Gama consegue livrar do açoite centenas de milhares de negros. O enterro dele foi disputado a tapa pra segurarem o caixão. Ele botava o dedo na ferida e convencia a sociedade branca que ela estava errada.
Fico com dificuldade de entender como nossos iguais não elegem uma fonte de conhecimento.Eu sou de uma família com um percentual de representatividade acima de 50%, nós negros somos maioria e não nos entendemos. Que dificuldade é essa?
As lutas do passado continuam. A dívida é muito grande e antiga com a comunidade negra. Meus filhos não tiveram nenhuma perseguição, mas não é por isso que eles não têm essa consciência.
Quando você liga a televisão pra ver uma dramaturgia, o percentual é de quase zero negros, mas, mesmo assim, a maioria assiste e não te elege, prefere eleger o branco de olhos azuis. O meio de comunicação é o “vil metal”. É preciso eleger os seus, num reconhecimento de si mesmo.
Eu não quero enxergar o mundo por uma fresta, quero abrir todas as portas e janelas, ver a claridade entrar. Eu seria muito mais se a nossa sociedade [elegesse] Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Motta. Precisamos reconhecer o seu valor, oferecer o mesmo reconhecimento expressado que o branco tem. Você pega um Tarcísio [Meira] – nós viemos da mesma época – onde está o Tarcísio e onde está o Antônio Pitanga?
Estou firme, mas não pelo reconhecimento de nossa sociedade. Já o Tarcísio está vários corpos na minha frente. Hoje temos pessoas como a Camila [Pitanga], como a Tais [Araújo], a Sharon Menezes, o Lázaro Ramos – tiro o chapéu pra eles.
No meu caso, no de Milton, Abdias [do Nascimento] ou Grande Otelo, o preconceito era radical. Agora já estamos em uma sociedade que reconhece o talento deles. Nós, no passado, éramos desbravadores, não tivemos o peso do reconhecimento de nossa sociedade.
Claro, ainda há um mito da democracia racial. Se você assistir os filmes que eu fiz, a altivez do ator e do personagem é a mesma. Precisamos criar aliados. Entender que você tem uma janela e pode compor com outras pessoas.
CC: Você pode adiantar pra nós sobre o seu novo projeto, um filme que vai contar a Revolta dos Malês?
AP: Os Malês eram os negros do norte da África, que falavam árabe e tinham conhecimento da Física, da Ciência e da Aritmética. Esses caras fizeram uma aliança com os negros do candomblé pra tomar o poder. Não é a história de negros coitadinhos do Pelourinho, são negros que detinham o conhecimento em 1835. Eles são de religião islâmica e compuseram um exército com os negros do candomblé, do catolicismo, e tiveram a capacidade, esse gesto nobre, de compor um exército assim.
Eu sou malês. Então, quero ter essa altivez, essa generosidade, essa maneira de enxergar o outro e crescer com outro, embora tenha uma opinião diferente. Não é porque sou negro que tenho que ser sambista ou jogador de futebol. Não é por isso que vou deixar de ser negro.
Eu quero ter minha opinião. Se eu não fui um negro alforriado, não fui um escravo, sou um negro liberto e saí das correntes. Mandar em mim não dá. Eu prefiro ser esse negro em movimento, para ter a capacidade de pensar, avançar e recuar. Por isso, nada contra os movimentos negros, mas eu sou um capoeirista mental. Depois que entendi que tinha asas para voar, quero voar.
CC: Você tem encontrado dificuldades para a realização do filme?
AP: Quero contar uma história da nossa família, da nossa sociedade e dos nossos irmãos. Sobre onde nasce o levante mais importante que aconteceu nesse País, quando os negros oprimidos entenderam que eram mais de 60% da população baiana. Muitos malês já vinham com culturas de liberdade da África e acreditavam que iriam inaugurar o islamismono Brasil. Eles tinham uma estratégia de tomar o poder, como tinha Napoleão Bonaparte.
Não é só contar a nossa história, mas a história brasileira. O Brasil não conhece o Brasil. É uma maneira de você, através dos Malês, entender a própria história desse país e também do negro entender sua própria história.
Ainda estou captando recursos para esse projeto, mas digo abertamente que estou ali como uma missão: ele não é meu, estou ali como instrumento.Gostaria de entregar esse filme ao Ministério da Cultura e ao Ministério da Educação para ser exibido em praça pública, nas comunidades, nas vielas, nos becos. Um filme que a gente tenha oportunidade de revisitar nossa própria história.
CC: O que mudou durante os governos Lula e Dilma no meio artístico e social? Como você vê o contexto político que estamos vivendo?
AP: Eu já vivi várias épocas: a Guerra Mundial, o golpe do Dutra, Getúlio Vargas, o golpe de 1964. Vi o mundo dar uma guinada de 180 graus, toda a revolução, os direitos das mulheres, a chegada da camisinha, da pílula, do homem na Lua. Vi até um zepellin em 1949.
Vi os Filhos de Gandhi rasgarem o ventre da Bahia quando era proibido o negro desfilar. Vi Grande Otelo, Ruth de Souza e vi Leá Garcia ganhar a Palma de Ouro. Abdias do Nascimento, Haroldo Costa, Milton Gonçalves, Jorge Coutinho – pessoas como eu, que estavam na estrada, me passaram o bastão e eu continuei essa história.
Vi a chegada do negro no cinema. Evoluímos e tomamos os espaços. Hoje, em 2017, eu vejo o negro chegar um pouco mais. Conquistamos muitas coisas na política, mas vejo a regressão e que tivemos algum tempo no poder, mas sem tomar conta de todo esse ganho.
Se tivéssemos tomando conta, não viveríamos essa situação delicada de eu estar com 77 anos e viver outro golpe.
Agora, teremos que reinventar. Eu quero ter força pra viver de novo os momentos que vivi com a distribuição de renda feita por Lula e Dilma. Esse filme eu já vi.
Estou muito preocupado, porque agora são meus filhos, netos e bisnetos, são esses jovens que estão começando a caminhar com suas próprias pernas. Precisamos respirar um pouco e pensar de que maneira vamos enfrentar essa tempestade.
É um momento que jamais pensaria, de um grau de embrutecimento da nação muito grande. Já lutamos contra isso. É 2017 e estamos passando por isso de novo? Que capacidades teremos pra detectar o grau dessa tempestade e continuar de pé com dignidade de entender e participar da luta do outro? É um momento que estou querendo entender.
CP: Acho estamos vivendo um momento no qual as pessoas querem se entrincheirar em um só lugar. Precisamos ter um entendimento dialético da vida, no qual a gente não pode ficar num só lugar. Precisamos repensar, dialogar com todos e se colocar na posição de todos. Uma mulher, claro, principalmente as mulheres negras, sofrem de maneira atroz e doída uma série de opressões que eu mesma ainda não tenho a dimensão na minha carne. Mas, como ser humano, estou aberta para ver o outro. Eu sei disso e sei também precisamos falar muito disso, gritar muito, pra contrapor.
CC: Antônio, qual o conselho você daria hoje para essa nova geração de artistas negros?
AP: O artista negro, década a década, tem-se colocado de uma maneira maravilhosa com a música, as artes plásticas e com a dança. Mas em que momento a gente entende essa contribuição no coletivo, que não seja só pra um? Que não seja só para dançar pra alguém bater palma?
O conselho que eu dou é que o jovem possa entender sua raiz, possa se comunicar mais com o outro – o outro tem muita história pra contar, já que nós viemos de várias Áfricas.
Eu perguntaria: de que maneira você pode alimentar o outro e vice-versa? Para quem você está escrevendo, grafitando, contribuindo? Você tem que entender quem é você e qual é o seu papel.
E é um papel valiosíssimo, pois seus irmãos ainda são perseguidos, oprimidos, sofrem preconceito, suas irmãs, ganham menos do que o homem negro.
É a revolução do conhecimento. Procure olhar no espelho, quem sou eu? Acho que é entender seu habitat intelectual, sua formação, a maneira de discutir, defender e colocar sua questão, sem medo de se expressar.
A gente acha que não pode incomodar. Eu quero incomodar, vim para incomodar. Às vezes eu fico muito triste com nossos irmãos, que querem mais contentar uma sociedade opressora do que entender os nossos.
*Larissa Ibúmi Moreira é historiadora, feminista interseccional e escritora.