Durante muito tempo, o machismo foi tratado apenas como um problema cultural ou moral. Mas a ciência tem mostrado que ele vai além: a desigualdade de gênero pode literalmente moldar o cérebro humano.
Um amplo estudo internacional, que analisou milhares de imagens cerebrais de pessoas em quase 30 países, revelou que viver em sociedades mais desiguais altera estruturas cerebrais, especialmente nas mulheres.
Em contextos em que a desigualdade de gênero é mais intensa, mulheres apresentam menor espessura cortical em áreas ligadas ao controle emocional, à resiliência psicológica e à regulação do estresse.
Essas regiões também estão associadas a transtornos como depressão e estresse pós-traumático.
A metáfora usada por pesquisadores é forte, mas precisa: é como se a desigualdade deixasse marcas duradouras, como “cicatrizes” no cérebro.
Essas mudanças não surgem do nada. Elas são resultado da plasticidade cerebral, a capacidade que o cérebro tem de se adaptar às experiências vividas. O mesmo mecanismo que permite aprender um idioma, tocar um instrumento ou desenvolver novas habilidades também registra experiências prolongadas de desvalorização, medo, silenciamento e vigilância constante.
O problema é que, quando o estresse é crônico, como ocorre em ambientes marcados pelo machismo, essa plasticidade passa a funcionar contra o próprio bem-estar, limitando a capacidade natural de adaptação e recuperação emocional.
Estresse que se acumula e atravessa anos
Os efeitos do machismo não se manifestam apenas no presente. Eles se acumulam, se prolongam e reaparecem anos depois. Estudos longitudinais mostram que mulheres que vivenciam discriminação de gênero apresentam piora significativa da saúde mental ao longo do tempo, mesmo quando essas experiências não são contínuas ou extremas.
Pesquisas com milhares de mulheres revelaram que aquelas expostas a situações de sexismo (desde se sentirem inseguras em espaços públicos até sofrerem insultos, assédio ou violência) tinham risco muito maior de desenvolver sofrimento psicológico anos depois. O impacto envolve também menor satisfação com a vida, sensação de solidão, queda da qualidade de vida e perda de bem-estar emocional.
Esse fenômeno está ligado ao chamado desgaste biológico do estresse, quando o organismo permanece em estado de alerta por longos períodos. O corpo e o cérebro passam a funcionar como se o perigo fosse constante. Com o tempo, isso compromete mecanismos emocionais, cognitivos e até físicos.
Embora os homens não apresentem as mesmas alterações cerebrais no mesmo grau, eles também são afetados em sociedades mais desiguais, exibindo mudanças associadas a maior rigidez emocional, dificuldades de empatia e pior regulação do estresse. Ou seja, o machismo atinge a saúde mental coletiva.
Marcas vão além do psicológico
O machismo também afeta a forma como mulheres são percebidas, escutadas e tratadas — inclusive na medicina. Há décadas, estudos apontam que queixas de saúde feminina tendem a ser levadas menos a sério, com maior risco de subdiagnóstico, atraso no tratamento ou atribuição simplista dos sintomas a fatores emocionais.
Esse padrão começa cedo. Meninas são frequentemente educadas para serem discretas, agradáveis e resistentes à dor, física e emocional. Aprendem a não incomodar, a minimizar desconfortos e a esconder sinais de sofrimento. Ao longo da vida, esse aprendizado se transforma em um comportamento de mascaramento, que dificulta diagnósticos precisos, inclusive na saúde mental.
Mesmo profissionais especializados podem ter dificuldade em reconhecer sintomas quando eles não se encaixam em modelos tradicionais, historicamente baseados em padrões masculinos. Por isso, romper esse ciclo não é apenas uma questão de justiça social. A ciência mostra que promover igualdade de gênero melhora indicadores de saúde e diminui custos sociais e econômicos.