Como se fosse um saco

Essa foi a forma com que Cláudia da Silva Ferreira foi arrastada por uma viatura da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Sua morte evidencia uma realidade já antiga nas periferias brasileiras: a violência policial contra negros e pobres.

Por Anna Beatriz Anjos

Era manhã de domingo no Morro da Cegonha, em Madureira, no Rio de Janeiro. Sem a preocupação de ir para o serviço naquele dia, a auxiliar de limpeza Cláudia da Silva Ferreira saiu de casa para comprar pão. Talvez, a intenção fosse agradar a família.

Ela vivia com seu marido, o vigia Alexandre Fernandes da Silva, de 41 anos, e com seus quatro filhos – a mais velha é Thais, de 18 anos, que trabalha como caixa de supermercado. Além das suas próprias, Cláudia cuidava de outras quatro crianças, suas sobrinhas. Nenhuma das pessoas que faziam parte do cotidiano e da sua vida imaginariam que, naquele domingo, ela não voltaria com o saco de pães prometido.

No caminho entre a casa e a padaria, Cláudia foi baleada. Os tiros a atingiram na nuca e nas costas. A versão da polícia é de que os projéteis que a perfuraram foram disparados durante uma troca de tiros com traficantes do morro. Os moradores da comunidade afirmam que as balas partiram de armas da própria PM.

Familiares de Cláudia tentaram socorrê-la, mas foram impedidos pelos três agentes envolvidos na ação. “Deram tiro pro alto para afastar as pessoas, eu fiquei parada atrás da blazer para não deixar levar. Eles me empurraram para levar ela. Eu falei que não ia levar e eles me empurraram para levar ela. Se eles quisessem prestar socorro, eles não iam tentar agredir ninguém. Eles estavam achando que a minha mãe era bandida”, contou Thais, em depoimento a um telejornal.

COMO SE FOSSE UM SACO

O que se seguiu foi a barbárie reproduzida a exaustão durante esta semana que sucedeu o domingo (16): uma mulher pendurada pelos trajes curtos, correspondentes ao calor carioca, sendo arrastada por uma viatura da polícia. O lado direito de seu corpo em contato com o chão, sua carne, já ferida pelos disparos, rasgada pelo asfalto. Seu sangue deixou um rastro de cerca de 250 metros na Estrada Intendente Magalhães, conforme o carro fazia ultrapassagens. Até que, com frieza, os policiais pararam, saíram do carro, e jogaram o corpo pendente de volta para dentro porta-malas e seguem viagem. Quando chegaram ao hospital Carlos Chagas, Cláudia já não tinha mais vida, segundo informou a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro.

Os subtenentes Rodney Miguel Archanjo e Adir Serrano e o sargento Alex Sandro da Silva, responsáveis pelas lamentáveis cenas, ficaram presos por alguns dias, mas já estão em liberdade – a juíza Ana Paula Pena Barros, da Auditoria da Polícia Militar, acatou recomendação do Ministério Público. Em depoimento, afirmaram que a trava do porta-malas estaria quebrada e teria aberto sozinha.  Um laudo da perícia, entretanto, desmentiu a tese dos agentes.

“Eles arrastaram minha mãe como se fosse um saco e a jogaram para dentro do camburão, como um animal”, gritava Thais aos prantos, em frente aos jornalistas. “A perna dela ficou toda em carne viva. Não podiam ter feito isso com ela”, contou o viúvo Alexandre. Claudia tinha 38 anos. Em setembro, comemoraria 20 de casamento. Ela deixou, além de tristeza e indignação, uma pergunta: por que a polícia militar, não só no Rio de Janeiro, continua a agir de forma truculenta, vitimando tantas pessoas?

Guerra declarada

De acordo com a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em novembro de 2013 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ao menos 5 mortes ocorrem durante intervenções policiais todos os dias no Brasil. Isso significa que, em 2012, pelo menos 1.890 pessoas morreram no país pela ação de policiais civis e militares em situação de “confronto”. Samira Bueno, socióloga e diretora executiva da organização, afirma que, por conta da função ostensiva desempenhada pelas polícias militares, são eles os responsáveis pela maioria dessas mortes. “Os números de mortes causadas pela Polícia Civil, com exceção da Bahia, é bem baixo em todos os estados brasileiros”.

O número seria maior ainda se entrassem na conta as vítimas feitas por policiais fora do horário de serviço. As mortes que ocorrem enquanto os agentes fazem os chamados “bicos” como seguranças e vigias engordariam as estatísticas. Os dados, embora incompletos, denunciam que o modus operandi das polícias brasileiras, sobretudo as militares, implica altos índices de letalidade.

Os níveis de outros países comprovam essa tese. Ainda segundo o relatório do FBSP, em 2011, a polícia de Nova Iorque, metrópole com cerca de 8,2 milhões de habitantes, atirou em 24 pessoas e matou apenas 8. No mesmo período, em São Paulo, habitada por 11 milhões de pessoas, as polícias militar e civil fizeram, juntas, 242 vítimas. No Rio de Janeiro, a situação é ainda mais crítica: no ano em questão, 283 civis foram mortos pelos agentes de segurança, sendo que o município tem a menor população entre os três considerados – 6 milhões de habitantes.

COMO SE FOSSE UM SACO

O cenário não se modifica quando se compara o Brasil a outros países com índices de criminalidade semelhantes ou até piores. No caso do México, por exemplo, a taxa de homicídios era de 23,7 para 100 mil habitantes em 2011, e, no mesmo ano, o número de pessoas mortas por policiais em serviço foi de 1.652. Já na África do Sul, a taxa de homicídios em 2013 foi ainda maior – 30,9, e 706 pessoas morreram em intervenções policiais (dado de 2011). O Brasil, em 2012, teve taxa de homicídios intermediária entre esses dois países – 24,3No entanto, o índice de vitimização policial é o mais grave dos três: 1.890 pessoas mortas no mesmo ano.

Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel reservista da Polícia Militar de São Paulo e autor do livro O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Editora Escrituras), a truculência com que agem as polícias militares no Brasil está diretamente ligada a dispositivos instituídos pelo regime militar que sobreviveram ao processo de redemocratização. O mais expressivo deles, segundo Paes, é a Doutrina de Segurança Nacional, importada dos norte-americanos e aplicada ao contexto brasileiro.

A doutrina determinava que as forças armadas eram responsáveis pelo funcionamento harmônico da sociedade, e que qualquer pensamento divergente comprometeria essa harmonia. À época da ditadura militar, toda pessoa ou organização dissonante da ideologia liberal – em especial, os comunistas, chamados de “subversivos” ­- era considerada “inimigo a ser combatido”, a partir de uma lógica de guerra. De lá para cá, a ameaça mudou de figura, mas o fundamento persiste, de acordo com o tenente-coronel. “Hoje, o inimigo, como dizem as próprias autoridades, são as pessoas que fazem do morro seu quartel general para administrar o tráfico de drogas. Isso determina que os policiais vão aos morros preparados para uma guerra. E, em uma guerra, ou você corre o risco de morrer, ou você mata. Por isso, eventuais mortes de civis que não são traficantes são tidas como danos colaterais aceitáveis”, explica.

Atila Roque e Alexandre Ciconello, diretor executivo e assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, respectivamente, reiteram a ideia de que a estética militar norteia o modo de atuar das PMs brasileiras. “O que temos visto é a persistência de uma narrativa de guerra que demarca os territórios de favelas como espaços a serem retomados de um exército inimigo (o tráfico), ocupados pela polícia e pacificados. As populações seriam, nessa versão, espectadores passivos – muitas vezes vítimas ‘colaterais’ – desse esforço ‘liberador’”, escreveram, em artigo publicado na edição 128 da Fórum. “Os policiais entraram, na ótica deles, em um território de guerra declarada. Foram para o combate. E essa senhora foi uma vítima dessa lógica”, destaca Paes, em relação ao caso de Cláudia.

Que a herança do regime militar contamina a arquitetura institucional da segurança pública no Brasil é consenso entre os especialistas. Mas, se esse pensamento não encontrasse eco em diversas esferas da própria sociedade, o quadro não seria tão complexo. É o que ressalta Samira. “A população acha que é legitimo fazer justiça com as próprias mãos, isso não é novo. Na década de 80, as pessoas se uniram para pagar advogado para o Cabo Bruno, um justiceiro. Isso [violência policial] reflete um pouco os mecanismos de resolução de conflitos da sociedade brasileira. Infelizmente, o ‘bandido bom é bandido morto’ é uma realidade no Brasil. É legitimado, muitas pessoas aprovam.”

A carne mais barata do mercado é a carne negra, pobre e favelada

A forma truculenta com que os protestos de junho de 2013 foram reprimidos pelas polícias militares em todo Brasil – sobretudo, no Rio de Janeiro e em São Paulo – reanimaram a discussão sobre violência policial. Para Raquel Willadino, psicóloga e diretora do Observatório de Favelas, isso tem uma explicação. “A violência policial também começa a atingir outros territórios da cidade e outros grupos sociais. Isso contribui para que o tema ganhe força no debate público”, disse, em entrevista ao Observatório da Sociedade Civil.

Subentendido na fala de Raquel fica o fato de que os abusos registrados durante os protestos de rua não são novidade para os moradores das periferias brasileiras.  Principalmente, para os negros e pobres. A pesquisa Participação, Democracia e Racismo?, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgada em outubro de 2013, revela que a chance de um adolescente negro ser assassinado é 3,7 vezes maior em comparação aos brancos. Além disso, enquanto a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil habitantes, a proporção em relação aos brancos é de 15,5 – uma brecha de cerca de 135%.

Para Almir de Oliveira Júnior, pesquisador do Ipea, e Verônica Couto de Araújo Lima, acadêmica da área dos direitos humanos da Universidade de Brasília (UnB), “se no Brasil, a exposição da população como um todo à possibilidade de morte violenta já é grande, ser negro corresponde a pertencer a um grupo de risco, pois a cada três assassinatos, dois são de negros”.

COMO SE FOSSE UM SACO

Os dados evidenciam que a perda da família de Cláudia é muito mais recorrente do que mostram as manchetes dos jornais. Débora Maria, fundadora do movimento Mães de Maio, enfrentou a dor de ter o filho assassinado por policiais militares, em maio de 2006. Édson Rogério da Silva era gari e tinha 29 anos quando morreu nas mãos dos agentes de segurança do estado. Estima-se que, além dele, outras 450 pessoas tenham perdido a vida durante uma de repressão da Polícia Militar de São Paulo ao Primeiro Comando da Capital (PCC). “Quando sofri na pele a violência policial, vi que o inimigo maior da instituição é o pobre, o negro. Isso é realidade. Após o assassinato do meu filho, montei o movimento Mães de Maio, e agora, há oito anos na luta, posso dizer que as vítimas só mudam de endereço. É uma perseguição de cor”, relata.

“Além da polícia militar matar muito, é extremamente seletiva. Ela não faz na periferia a mesma coisa que faz em um bairro como o do Jardins, em São Paulo, ou faz no Alemão o que faz na zona sul do Rio”, indica Samira Bueno. A socióloga atribui, mais uma vez, o estereótipo de que “preto pobre é bandido” à própria sociedade. “A polícia criou isso sozinha? Ou é uma construção social de que esse é um segmento ‘perigoso’ da população?”, contesta.

Alternativas

As manifestações de junho não apenas mostraram o modo violento de operar da polícia militar, mas colocaram em pauta a discussão de como torná-la compatível ao estado democrático de direito. No Rio de Janeiro, os protestos realizados por professores da rede municipal de ensino, duramente reprimidos pela PM, também aumentaram a pressão para que a questão fosse publicamente abordada.

O debate em torno da causa motivou a criação da proposta de emenda à constituição número 51, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ). Luiz Eduardo Soares, antropólogo e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ajudou na elaboração do texto.

COMO SE FOSSE UM SACO

A intenção da PEC-51 é modificar a arquitetura institucional da segurança pública no Brasil. “Ela toca em temas sensíveis, mas fundamentais para revertermos a espiral de criminalidade e violência que afeta a todos nós, indistintamente, como sociedade, mas especialmente aos jovens negros, aos moradores pobres das periferias de nossas grandes cidades, e aos próprios policiais”, declara Lindbergh Farias. As transformações ocorreriam, sobretudo, por meio da reforma das polícias. Nesse âmbito, são três as principais disposições: a instituição do ciclo completo de trabalho, a exigência da carreira única e a desmilitarização.

A ordenação da instituição em carreira única significa a eliminação das divisões entre praças e oficiais e delegados e não-delegados. Isso, em tese, democratizaria as polícias e lhes conferiria maior coesão interna “Você acaba com essa ideia de instituição de castas que há na polícia. No lugar, vem a premissa de que qualquer um que tiver mérito pode se tornar, por exemplo, um oficial. Isso é uma demanda da base”, explica Samira.

Já o ciclo completo determina que a mesma polícia deve desempenhar todos os estágios do trabalho (preventivo, ostensivo e investigativo), o que eliminaria a cisão entre civis e militares. Para a socióloga, o fato das polícias não trabalharem de forma conjunta é o que determina sua ineficiência – dados do Mapa da Violência de 2011, divulgado pelo Ministério da Justiça, apontam que apenas 8% dos homicídios ocorridos por ano no Brasil são solucionados. “A polícia militar vai lá e prende o suspeito, mas é a polícia civil que vai investigar. Quem tem as informações é a PM, que não vai repassá-las aos civis – eles terão de recomeçar o processo. Essa rixa entre as duas corporações é muito forte”, declara.

Dentre os três, no entanto, é a desmilitarização o imperativo com mais força atualmente. A estrutura corporativa herdada da ditadura militar traz diversas incoerências ao exercício do trabalho policial. Além da lógica de guerra e do estabelecimento de um inimigo a ser combatido, essa arquitetura institucional restringe a liberdade de ação dos agentes. A eles, que representam a ponta da cadeia, não cabe pensar e refletir sobre seu campo de atuação, mas sim cumprir ordens.

“Isso funciona no exército porque o propósito é fazer com que o método adotado por essa instituição, que é o pronto-emprego, se viabilize. Para quê? Para atingir as suas metas constitucionais, que são a defesa da soberania nacional, etc., envolvendo inclusive práticas bélicas quando necessário”, destacou Luiz Eduardo Soares, em entrevista ao site Viomundo. “A aplicação à polícia militar desse mesmo modelo organizacional só se justificaria se a missão da PM fosse análoga à do exército. Não é. Mesmo constitucionalmente, não há nenhuma relação”, questiona.

Para o senador, a manutenção da estrutura militar denuncia o atraso do modelo de segurança pública em vigor no país. “A formação dos policiais, e organização das polícias, ao contrário, deve se orientar pelo estabelecimento de relações de confiança com as comunidades, pelas estratégias de policiamento comunitário”, defende.

Outra novidade trazida pela PEC-51 é a determinação de que a decisão sobre o modelo policial fica a cargo dos estados da federação, uma tentativa de se respeitar as divergências entre eles. “Em determinado estado, pode não fazer sentido constituir Polícias Municipais; em outros, pode ser que o caminho seja a manutenção de duas polícias estaduais, de ciclo completo, que atuem sobre todo o território, mas concentrando a investigação, cada uma, em tipos diferentes de crimes”, exemplifica Lindbergh. “Essa decisão deve ser tomada nos diferentes estados com ampla participação da sociedade civil e dos profissionais de segurança pública”, ressalta.

COMO SE FOSSE UM SACO

*As imagens que ilustram essa matéria fazem parte do projeto “100 vezes Claudia“, lançado pela equipe do site Think Olga. O objetivo da iniciativa é humanizar a figura de Cláudia da Silva Ferreira; devolver-lhe sua cara, cores, sonhos e coragem. Tudo por meio de trabalhos enviados por artistas de todo o Brasil.
A ilustração da capa é José Carlos Angelo (Jota).

Fonte: Revista Fórum

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