Conceição Evaristo fala da Flip, de racismo e da possibilidade de se tornar a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na ABL

O cartaz de uma peça com atores negros pregado na porta da Livraria Cultura, no Centro, chama a atenção de Conceição Evaristo. “Vamos assistir?”, pergunta ela à assessora, Ludmilla Lis. A vontade de prestigiar combina com o lema que a autora tem repetido a mulheres negras de sua convivência e que, segundo ela, dá sentido à visibilidade que tem experimentado: “Uma sobe e puxa a outra”. Tudo que Conceição não quer é ser exceção, mas num país de oportunidades desiguais, isso acontece bastante. Nascida na favela do Pendura a Saia, em Belo Horizonte, numa família de mulheres lavadeiras, cozinheiras, faxineiras e empregadas domésticas, a escritora é a única de nove irmãos a chegar ao nível universitário. Agora, pode ser a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na ABL (a eleição é em 30 de agosto).

por Maria Fortuna no O Globo

Leo Martins

A vida dessa senhora de 71 anos, que é referência no debates sobre questões raciais, de gênero e de classe, continua sendo uma luta diária. A autora conta, sempre olhando nos olhos da repórter, duas situações que ilustram bem como o preconceito pode vir cercado de sutilezas. “Recentemente, uma mulher me abraçou, emocionada, e disse: ‘A senhora se parece com a minha mãe preta’”, lembra. “Perdi o chão, fiquei petrificada. Ela me colocou outra vez no lugar de subalternidade que lutamos para sair”. A outra situação aconteceu em seu prédio, quando uma museóloga, depois de saber que ela era escritora, perguntou: ‘De livro de receita?’”. A resposta correta seria: romances, ensaios, críticas literárias, poemas e contos (um deles, “Olhos d’água”, inclusive vencedor do Jabuti 2015). Livros que ela gosta de rascunhar a lápis, se possível, com uma cervejinha molhando as palavras.

Viúva, mãe de Ainá — que nasceu com síndrome rara e ganhou dos médicos expectativa de vida de três meses, mas já conta 37 anos —, Conceição não esmorece. Planeja dois novos romances, um livro de contos e um ensaio sobre autoras negras. (Por Maria Fortuna)

Em 2016, a senhora reclamou da falta de escritores negros na Flip. Que balanço faz desses dois anos?

Quem apontou a falta de negros na Flip, chamando a festa de ‘arraiá da branquidade’, foi Giovana Xavier, do grupo Intelectuais Negras. Concordei em gênero, número e grau e falei, numa mesa da Flip, sobre o manifesto que haviam criado. O documento foi um marco, mudou o perfil da festa que, ano passado, homenageou um escritor negro (Lima Barreto) e teve presença sem precedentes de escritores negros. Ali começou uma história democrática. Esse ano, tem Djamila Ribeiro, que nos representa muito bem e um autor africano (Alain Mabanckou). Participarei das atividades da Casa Insubmissa de Mulheres Negras.

A senhora pode ser a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira da ABL. O que significa?

Todos os lugares representativos nessa nação nos pertencem, à medida que a nacionalidade brasileira está marcada pela presença dos povos africanos. Concorrer é um direito de todo cidadão ou cidadã que tenha um livro. Eu tenho seis, um Jabuti (por “Olhos d’água”), obras publicadas em inglês, francês e espanhol. Se a ABL representa a literatura brasileira, então, quanto mais representantes de diversos espaços sociais, étnicos e de gêneros a casa tiver, mais democrática ela se torna.

O abaixo-assinado que reuniu mais de 20 mil assinaturas por sua candidatura foi encarado como pressão na ABL…

Penso que o documento não pode ser entendido como sendo do movimento negro, o Eduardo Suplicy assinou! São leitores e pesquisadores que têm referência da minha obra. Não é pressão, mas apoio. Tem a força do desejo e não do fazer acontecer. Quem decide são eles. Talvez, na história da ABL, nunca tenha havido candidatura tão representativa como a minha.

Se somos frutos do contexto e da educação que tivemos, o que foi fundamental na sua criação para se tornar a mulher que é hoje?

Para além da pobreza, o afeto, que se dava como uma compensação pelas carências materiais. A relação com a minha mãe, com as mulheres da família, me preparou para ser sensível ao mundo.

E a leitura, havia livros em casa?

Os livros que a gente tinha eram achados no lixo. Ganhávamos revistas da casa das patroas. O livro chega à minha casa quando entro para a escola. Meu primeiro contato com a literatura é com a oral. Minha mãe, uma tia e um tio eram pessoas expressivas na contação de histórias. Até hoje, tenho o tom de voz da minha mãe na cabeça. Dizem que meu texto ritmado vem daí. Isso preparou a minha escuta, o meu encantamento com as palavras.

O que te leva a escrever?

Preciso de algo para não enlouquecer. Escrever, para mim, sempre foi tentar entender o mundo. De criança, tinha uma angústia enorme quando percebia minha família trabalhando tanto e num estado de miserabilidade grande. Hoje, escrever ainda é essa falsa ideia de que se pode consertar o mundo.

Seu marido morreu de infarto e sua a filha nasceu com uma síndrome rara…

Quando minha filha (Ainá) nasceu, os médicos lhe deram três meses de vida. O diagnóstico ficou entre as síndromes de Noonan e de Turner, que têm características como pescocinho alado, uma cavidade torácica, problema cardíaco, de vista, e que pode ou não comprometer o sistema cognitivo, causando de leve a profundo retardo. Tem 37 anos, mas é uma menininha. Tem compreensão para muita coisa. É uma graça, tímida, não tem um que não se encante. Ela tinha nove anos quando o pai morreu, de infarto. Eu, 44 anos.

Djamila Ribeiro diz, em “Lugar de fala”, que mulheres negras já lutavam por reconhecimento no século XIX, antes de o feminismo ser reconhecido como movimento. Como a senhora vê o feminismo negro?

A gente luta desde sempre. Minha mãe é de 1922 e conta que, até os sete anos, andava nua no interior de Minas Gerais. Ou seja, até 1929, crianças andavam nuas ali. Mais tarde, nos anos 1935, ela diz que fazendeiros não davam trabalho às mulheres porque elas não rendiam tanto quanto os homens. Essas mulheres negras se organizaram em mutirão, e o trabalho delas passou a render. São formas organizativas de mulheres negras e pobres enfrentarem o poder patriarcal. Isso não está escrito na história do feminismo brasileiro. A luta se torna mais visível com uma estudiosa como Djamila. Há dez anos, não estaríamos falando disso. Há cinco, não tínhamos uma escritora negra em evidência. A gente vai comendo pelas beiradas.

Então, enxerga evolução mesmo num país onde comediantes ainda fazem piada com negros?

Dolorosa, mas, sim. Hoje precisa ser muito cínico ou alienado para dizer que essa sociedade é uma democracia racial. Hoje, está mais difícil varrer o racismo para debaixo do tapete.

Mas há poucos negros em espaços de poder…

Quando ganhei o Jabuti, foi o prêmio da solidão. Contei nos dedos os negros presentes. A gente tem visibilidade quando sai do espaço onde é comum. Um negro num restaurante ou condomínio chique é assunto. É uma maneira perigosa de compor o negro na sociedade brasileira. O Joaquim Barbosa virou caso exemplar por que era exceção. Que regras são essas que se pesca um e cria-se a impressão de que tudo está resolvido? Muita gente se esforçou e ficou no meio do caminho. Não quero ser vista como exceção. Na ABL, por exemplo: só faz sentido ser a primeira se eu puxar outras.

Fabiana Cozza foi considerada branca demais para viver Dona Ivone Lara no teatro. Como enxerga a questão do colorismo?

Houve um tempo em que negros de pele mais clara tinham o que, às vezes *brinco, de identidade escorregadia: quando era vantagem ser negro, eram; quando não, viravam brancos. Hoje, essas pessoas se assumem negras. Alguns não conseguiram perceber o comprometimento de Fabiana como mulher negra. O tom de pele ainda vai servir de válvula de escape? Acredito que, para a Fabiana, não. Talvez, a pergunta tenha sido feita para quem não merecia. Afirmar que nós negros brigamos entre nós é um discurso que o racismo brasileiro precisa. Quem sai prejudicada é a comunidade negra.

Há pessoas que acham exagero banir expressões como “mulata”, “denegrir”, “a coisa está preta”, “inveja branca”, além de tirar do repertório marchinhas de carnaval consideradas preconceituosas. Qual a sua opinião?

O imaginário da mulata gostosa, boa de cama está plantado na sociedade brasileira, assim como o da mãe preta, bem trabalhado por Gilberto Freire e que impediu muito a discussão do racismo brasileiro. Eu acho que ajuda. Cada vez que a gente é levado a pensar, reflete sobre a nossa responsabilidade dentro disso. O particular é político. As relações pessoais nos educam ou deseducam. Como você trata o porteiro do seu prédio, a sua empregada? Acredito nessa vigilância.

E no lugar de fala, acredita?

Acredito. Ele é marcado pela subjetividade dos sujeitos e também a partir de influências sociais. Por mais que você se aproxime de mim, em determinados momentos, não consegue ter a percepção que tenho. A primeira posição que o branco tem que ter se quiser se comprometer com a luta negra é reconhecer que, por mais que entenda determinadas situações, não sente na pele.

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