A corneta da alvorada tocou cedo em meu bairro negro com gente de todas as cores, que pode também ser o seu bairro negro em que todos podem morar.
Por Marcos Romão Do Mama Press
Nossos bairros negros brasileiros, não têm muros de fora para dentro. Estamos presos só de dentro para fora. Só temos portas para entrar. Raramente encontramos as portas de saída. São portas que só permitem a saída invidual.
Portais de evacuação coletiva só em casos de chuvas torrente ou nos dias de carnaval.
Desde 1835, quando nossos jovens saem em grupos de mais de 3, as nossas cidades entram em prontidão. (Decreto Imperial que dizia, que mais de 2 negros nas ruas era formação de quilombo. Hoje seria formação de quadrilha).
5 horas da manhã começou o tiroteio patrocinado por tropas de fora, em nosso bairro negro.
As tropas não foram convidadas, mas trazem sua Alvorada em demonstração cívica dos poderes racistas que representam.
Nossos festejos em honra de Zumbi do Quilombo dos Palmares irão atrasar. Se acontecerem será tenso. Quem estava convidado para falar, cantar ou dançar, na Alvorada marcada em volta do monumento à memória de Zumbi e da luta dos Quilombolas de Palmares, erguido no centro do Rio de Janeiro, já zapeou avisando que não vai chegar.
Os muros de dentro para fora foram fechados temporariamente, em mais um dia de Estado de Sítio em nosso bairro favela quilombo negro.
Os estrondos dos estampidos das metralhadoras ponto 50, ilustram para nossas crianças, como foram os trovões dos canhões Krupp usados por mercenários da Prússia, nas últimas investidas contra o Quilombo de Palmares feitas pelas tropas internacionais de Domingos Jorge Velho, a mando do reino de Portugal.
Já são 8 horas da manhã. As mulheres negras do meu bairro negro não podem sair para falar para o mundo em frente à estátua de Zumbi de Palmares, que estão matando seus filhos. Não vão poder falar que seus terreiros estão sendo depredados.
Não vão poder falar, que seus turbantes e contas pendurados no peito, as tornam cidadãs discriminadas no atendimento de saúde dos hospitais, nos atos de matrículas de seus filhos e filhas nas escolas públicas, nas repartições públicas e nos locais em que trabalha.
Não vão poder gritar para o mundo, que ela têm que se agachar seminua e mostrarem suas partes pudendas, cada vez que vai visitar seu filho ou marido preso.
Não vão também poder falar das dificuldades que encontram, quando vestidas de suas peles negras, arriscam todos os dias o trivial de ir e vir pelas ruas da cidade e dentro do próprio bairro negro em que vivem. São atacadas até em suas casas por grupos fundamentalistas de outras religiões.
O simples ato de entrar em um banco e passar pelas porteiras de vidro do apartheid, tornou-se um ato que as mulheres negras do meu bairro negro, evitam ao máximo. Para evitarem humilhações, só entram em um banco por extrema necessidade. Tudo mais que precisam, resolvem nas lotecas depois de enfrentarem filas imensas.
Está tendo uma pausa na “Alvorada Tiroteio”.
Vejo da janela, muitas mulheres com muitas crianças. Usam roupas coloridas. Estão altivas e elegantes. Devem estar indo para a festa de Zumbi, que vai acontecer sem tiroteios em um bairro classe média.
Hoje, excepcionalmente, os muros daquela praça de um bairro de classe média, estão abertos para tantas negras e negros. Para evitarem dissabores, pediram licença à prefeitura e comunicaram ao batalhão que vão chegar.
Por conta do tiroteio no meu bairro, os homens negros de meu bairro negro, não vão poder falar para Zumbi, que já até se acostumaram a andar invisíveis para não dar na pinta. Que para evitarem inconveniência, cortaram seus cabelos rentes por recomendação do pastor, do traficante ou do sargento prefeito do meu bairro negro.
Os homens negros de meu bairro negro, não são muito de falar. Mesmo os que conseguirem chegar na Estátua de Zumbi, ficarão calados. A mistura de remédios que o médico da UPA receitou para baixar a pressão e acalmar o coração, abalados pelas incertezas cotidianas, os tornaram monossilábicos, como o personagem de Vidas Secas. Ele não têm nem palavras, nem lágrimas para chorarem seus filhos mortos com 111 tiros
O homem negro do meu bairro negro, também não não encontra caminhos para sair do entumescimento, de tanto racismo que já levou como tapa na cara, lhe fizeram um quase homem, que mesmo ao andar no centro de uma rua, consegue dissimular sua presença, como se estivesse em um beco escuro.
Mas ele consegue sorrir, quando vê a meninada e as mulheres negras cantando para Zumbi, Dandara e Aqualtune. Sente saudades de um mundo que nuca teve.
Os adolescentes negros do meu bairro negro estão tensos como animais presos nas cercas do racismo. Não conhecem outra coisa na vida além dessas “Alvoradas de Tiroteios e Balas”. “Tiro no mijo, tio, espero acabar e caio fora, tio”, me responde uma jovem vizinha, que encontro ao usar a trégua para comprar pão de forma na banca de jornal, pois o dono da padaria informou que o padeiro só chegou agora, na pausa de fogo.
Meu amigo jornaleiro tem de tudo para emergências em sua banca, negro velho de guerra que é, tem até uma caixa de primeiros socorros. A freguesia ria dele por estes cuidados, mas viram que era uma prevenção séria, quando serviu até chegar a ambulância, para estancar o sangue na femural da atendente de caixa do supermercado, atingida meses atrás, por uma bala de fuzil enquanto trabalhava.
A garotada que se aglomera na esquina, realmente me surpreende.
Me contam que o tiroteio já acabou e que o caveirão já foi embora. Dizem que é sempre assim nas sextas e sábados ao fim do baile Funk:
” Tio, os caras ficam lá embaixo e atiram adoidado, sem mira. A gente já sabe e fica esperando. Tem vez que é meia hora, tem vez que dura mais. É só pra mostrar presença, tio. Se apavora não. Agora tá limpo.”
Pergunto sobre Zumbi e um grupo responde. “Só vamos arrumar a carcaça e “partimu” lá prá Cantareira, temos uma apresentação de Jongo e Capoeira na festa do Zumbi de Niterói, cê sabe né tio, cê é da área, também cum essa juba, não tão deixando mais capoeira lá na escola, jongo então, tá proibidão. O professor pastor diz que é coisa de macumba, é tio, essas coisa do diabo. Tá maluco o cara”.
A vida não tem coincidências. São 8:30 horas da manhã, e toca meu telefone. É o grande chefe Cacique Tukano, da Aldeia Maracanã que me telefona:
_Salve Romão, como é que está o dia de Zumbi?
_ E você como é que está meu grande cacique, como vai a saúde?
_ De saúde vou bem, só meio depressivo na Aldeia Vertical aqui no Estácio, que me jogaram depois que o Cabral expulsou a gente da Aldeia Maracanã.
_ Então vem para cá, Tukano, vamos almoçar numa barraquinha africana montado por um povo de São Gonçalo aqui na Cantareira, no Gragoatá em Niterói.
Vamos comemorar a união de negros e indígenas que aconteceu na Serra da Barriga em Alagoas, no Quilombo dos Palmares.
Tukano, sem vocês índios, nós negros não sobreviveríamos nestas terras desconhecidas, cada vez que fugíamos de uma fazenda dos brancos.
_Tem razão Romão, por isto nunca tivemos esta coisa entre nós de um se achar superior ao outro. Índio e negro tão colados nas fugas e nas lutas!
Vi que a garotada na esquina é que tem razão. Estado de sítio que nada. Isto é lá da cabeça deles, os brancos.
Índios e Negros criamos nosso mundo. Juntos, hoje somos maioria e temos nosso poder de criação por estarmos juntos. O poder deles é um outro. Este poder vai acabar. É um poder FAKE , sem sustância e sem alma.
Viva Ajuricaba! Viva Zumbi! Vivamos nós!
Nota familiar:
Em 1980, fiz com a amiga Marlene Oliveira e seu irmão Maurício a primeira festa em Niterói chamada “Acorda Zumbi” em um 20 de novembro. Foi na pequena escola de samba Souza Soares no pé do morro do mesmo nome, em meu bairro negro de vivências.
Vieram 300 capoeiras de todo o estado do Rio e até de Juiz de Fora e Belo Horizonte, que se juntaram às 500 pessoas que lá estavam na rua, pois a quadra não cabia de tanta gente.
Quando viu tanto negro e negra mais que lindos juntos, mamãe me puxou em um canto e vaticinadora perguntou:
Marquinhos, você não acha que este negócio de acordar Zumbi, não vai trazer muitos problemas e apoquentação para esquentar a sua cabeça?
Não soube o que responder e fui com Jair Vasconcellos do SEMBA de São Gonçalo, em um fusquinha velho, buscar os dois panelões de feijoada que encomendáramos aos presos da cozinha do Complexo penitenciário da Frei Caneca, em uma façanha que só no mundo negro era possível em plena ditadura, ainda com tantos presos políticos.
Na volta pela ponte ainda novinha, tiramos a suspeita que tava encima do fusca com dois negões, sem o banco do carona e no espaço deixado pela assento retirado, levando dois panelões tombados com plaquinhas do presídio, cheios de feijoada quente e espalhando o cheiro bom até no mar, pois a porta do carona semi-aberta estava amarrada com uma cordinha, quando Jair numa de suas iluminações negras trazidas de África, sugeriu ao patrulheiros rodoviários da polícia federal, que trocassem a comida fria de suas marmitas, por uma suculenta feijoada de cadeia, recheada de carnes que compráramos antes e havíamos entregue ao presídio, com autorização do diretor, pois fomentávamos atividades remuneradas para presidiários.
Como agradecimento pela generosa feijoada oferecida, os patrulheiros destacaram um soldado para nos escoltar de moto como batedor, até as portas de liberdade da Consciência Negra. Lá chegamos na hora certa da fome da multidão, pois não tivemos mais nenhuma blitz pra preto no caminho.
Meses depois, mamãe desesticou os cabelos, os soltou e se transformou numa ainda mais linda mulher black.
Se viva, ela estaria comigo hoje conversando orgulhosa na nossa esquina de nosso bairro quilombo negro, com as meninas empoderadas a caminho da universidade, do trabalho ou da creche para levar seus filhos. Mamãe e eu, com todas as agruras da vida, sempre fomos felizes desde o dia em que libertamos a nossa consciência. Dela aprendi o amor. Ter consciência negra apenas aumentou as minhas possibilidades de espalhar este amor que tenho por meu povo e por todos os povos. Só respeitando nossas diferenças, é que aprendi que podemos se iguais.
Mas que todos saibam e não esqueçam, todo este amor, é resultado de muito trabalho interno de consciência anti-destruição, para transformar a raiva e o ódio que a gente sente quando percebe a exata dimensão do genocídio negro que perpetuado continua em 2016, em um amor de luta e sem contemporização com o racismo e os racistas.
É um amor alerta, com um olho no padre ou pastor e outro na missa ou no culto.
Mas posso dizer que é sublime manter a capacidade de amar, mesmo carregando tantas facadas nas costas. Aprendi com a garotada!
Nota da Mamapress: A foto de chamada de nossa matéria é para lembrar que todos os anos, grupos neonazistas, pixam a estátua de Zumbi dos Palmares, erigida no mangue da criação do mundo, com suásticas e símbolos nazistas. É para lembrar para que fiquemos sempre atentos pois as forças do ódio estão cada vez mais raivosas, e não perdem uma chance para tentar nos aniquilar.
Ao fechar a matéria e me preparar para ir na Festa de Zumbi. Vejo da janela da Mamapress, passar uma carreata estridente de fascistas fundamentalistas religiosos. Uma vox estridente grita ao microfone:
_Precisamos limpar nosso país dos comunistas e da macumba!
Será que vou ter que finalmente cortar os meus cabelos?
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