COVID-19 e seu impacto nas comunidades negras nos Estados Unidos e no Brasil

A COVID-19 tem exercido um impacto devastador, e as comunidades negras em todo o mundo têm sido as mais afetadas pela pandemia. Mesmo que a extensão total do seu impacto ainda esteja para ser determinada, essas comunidades estão desproporcionalmente propensas a contraírem e perecerem em função da COVID-19, comparando-se com o restante da população. Tecemos considerações a respeito do impacto da pandemia de COVID-19 no Brasil e nos Estados Unidos como ponto de partida para futuros estudos sobre populações negras em todo o mundo. 

O Brasil é o maior e mais populoso país da América do Sul, com uma população de aproximadamente 210 milhões. A população negra constitui a maioria dos habitantes do país, representando 51,1% da população total[1]. Por outro lado, os Estados Unidos possuem uma população total de 328,2 milhões, sendo que a parcela negra representa apenas 12,1%. Uma comparação entre esses países pode, inicialmente, parecer incomum, especialmente porque historicamente esses países foram retratados como modelos contrastantes de raça e racismo. Por exemplo, um sistema de classificação racial e as leis de Jim Crow nos EUA, muitas vezes, foram justapostas ao contexto de mistura de raças, e as manifestações veladas e sofisticadas do racismo no Brasil. No entanto, o impacto contínuo da pandemia de COVID-19 no Brasil e nos EUA sugere que, embora existam diferenças, as comunidades negras em ambos países apresentam condições sociais semelhantes, tornando-as muito mais vulneráveis ​​ao vírus do que suas congêneres nacionais.

Os primeiros casos de COVID-19 no Brasil foram relatados em São Paulo, no final de fevereiro de 2020. Os casos iniciais de infecção incluíram três homens brancos que haviam viajado para a Europa e foram diagnosticados ao retornarem para o Brasil. Cada um desses pacientes portadores do vírus recebeu tratamento no Hospital Israelita Albert Einstein, considerado o melhor hospital da América Latina[2]. Seus perfis, semelhantes, contribuíram para o esboço inicial[3] da COVID-19 como uma “doença de gente rica”. Aproximadamente, um mês após o primeiro caso confirmado no Brasil, a COVID-19 chegou à comunidade Cidade de Deus, um bairro predominantemente negro e economicamente desfavorecido no Rio de Janeiro. Desde então, o vírus se espalhou por todo o país, alastrando-se rapidamente para as periferias urbanas (principalmente habitadas por negros) e causando mortes, perdas e sofrimento expressivos.

No Brasil, o vírus tem sido desproporcionalmente mais letal para a população negra. Os relatórios epidemiológicos mais recentes do Ministério da Saúde[4] demonstraram que, apesar da população negra representar apenas 46,7% dos pacientes hospitalizados devido à síndrome respiratória aguda grave, ela corresponde a 54,8% dos óbitos por COVID-19. Mais recentemente, a “Agência Pública”[5] analisou relatórios epidemiológicos de 11 a 26 de abril, revelando que, as mortes causadas pela COVID-19 tinham triplicado entre a população branca, já na população negra, a taxa foi 5 vezes maior.

Padrões semelhantes relacionados à raça e mortalidade surgiram nos Estados Unidos, onde os negros americanos constituem menos de 13% da população, mas representam 27% de todas as mortes (mais que o dobro da proporção da população). Em maio de 2020, o Laboratório de Pesquisa APM[6] constatou que “a taxa de mortalidade para negros americanos é 2,2 vezes maior que a dos latinos, 2,3 vezes maior que a dos asiáticos e 2,6 vezes maior que a dos brancos”.

Essas disparidades raciais não são coincidências, estando, entretanto, relacionadas com as condições sociais e econômicas semelhantes, enraizadas no racismo. Por exemplo, uma proporção significativa da população negra do Brasil vive em comunidades empobrecidas (favelas), áreas residenciais densamente povoadas e marcadas por altos índices de vulnerabilidades. Nos Estados Unidos, os negros americanos também têm muito mais probabilidade de residir em áreas densamente povoadas e caracterizadas por pobreza (resultado direto da segregação residencial e práticas racistas de moradia). Nos dois países, a vulnerabilidade econômica dos negros, as barreiras impostas à sua capacidade de praticar o distanciamento social e o acesso limitado aos serviços de saúde facilitam e aceleram o processo de transmissão da COVID-19.

No âmbito do trabalho, os trabalhadores negros de ambos os países estão mais propensos a serem considerados trabalhadores essenciais e mais propensos a enfrentarem circunstâncias econômicas que não lhes permitem ficar em casa, longe de seus locais de trabalho. O Brasil possui a maior população de trabalhadores domésticos do mundo, sua grande maioria formada por mulheres negras, cujas circunstâncias econômicas precárias exigem que as mesmas continuem trabalhando, mesmo em situação de pandemia, para sustentar suas famílias. 

Embora os negros americanos não sejam a maioria dos trabalhadores domésticos nos Estados Unidos, 25% destes estão empregados no setor de serviços e 30% de todos os enfermeiros licenciados são negros, o que significa que os mesmos sejam desproporcionalmente forçados a continuar trabalhando durante a pandemia[7]. As funções desempenhadas, majoritariamente, por negros no Brasil e nos Estados Unidos, como motoristas de ônibus, balconistas de supermercado, atendentes de metrô, enfermeiras, trabalhadores de fastfood, assim também como agentes carcerários (e encarcerados), colocam-nos em um risco significativamente maior de exposição à COVID-19. Lembremos de Cleonice Gonçalves, trabalhadora doméstica e vítima fatal atribuída ao coronavírus no Rio de Janeiro que foi infectada por sua patroa[8], assim como o motorista de ônibus da cidade de Nova York[9] que morreu após um passageiro ter tossido sem cobrir a boca. 

Finalmente, as disparidades raciais da COVID-19 podem também ser atribuídas às condições de saúde e menor acesso aos cuidados que os cidadãos negros recebem nos dois países. De acordo com o CDC dos EUA, para os residentes negros dos EUA[10], a falta de seguro de saúde, taxas mais altas de condições crônicas, estigma e desigualdades sistêmicas aumentam sua vulnerabilidade ao vírus. Da mesma forma, estudos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)[11] demonstram que 67% dos cidadãos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS são negros (pretos e pardos). A população negra no Brasil e nos Estados Unidos enfrentam maior prevalência de doenças como diabetes, tuberculose, hipertensão e doença renal crônica, que os colocam em um grupo de alto risco para o COVID-19.

Nitidamente, as atuais disparidades raciais relacionadas ao impacto da COVID-19 evidenciam que a população negra no Brasil e nos EUA são as mais afetadas e a previsão é de agravamento dessas consequências nos próximos estágios da pandemia. A urgência de diálogos e iniciativas transnacionais visando aperfeiçoar as condições de saúde, em ambas comunidades negras, tornam-se evidentes e necessárias. Nossa expectativa é que uma maior atenção ao impacto global do racismo e da desigualdade na saúde da população negra passe a fundamentar a implementação de iniciativas transnacionais visando superar ambos o racismo e a COVID-19. E, como sugerem as consequências dessa pandemia, a construção de solidariedades transnacionais não é opcional, é literalmente uma questão de vida ou morte.

 

Dra. Elizabeth Hordge-Freeman é Professora Associada de Sociologia na Universidade do Sul da Flórida. É mestre e Ph.D. em Sociologia pela Universidade Duke. É autora do livro A cor do amor: características raciais, estigmas e socialização em famílias negras brasileiras (2018, Edufscar). https://www.amazon.com.br/Cor-do-Amor-Elizabeth-Hordge-freeman/dp/8576004976

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Michel Chagas é militante do movimento negro, membro do Instituto Steve Biko. É especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestre em Políticas de Desenvolvimento Internacional pela Universidade Duke.

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[1]  A categoria negra representa a porcentagem agregada das pessoas que se identificam como pretos e pardos.

[2] Hospital Israelita Albert Einstein, Diferenciais, https://www.einstein.br/sobre-einstein/diferenciais

[3] https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-brazil-poor/imported-by-the-rich-coronavirus-now-devastating-brazils-poor-idUSKBN22D549

[4] Ministério da Saúde, BE 16 – Boletim COE Coronavírus, https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/21/2020-05-19—BEE16—Boletim-do-COE-13h.pdf

[5] Agência Pública é a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil. https://apublica.org/

[6]  The color of coronavirus:COVID-19 deaths by race and ethnicity in the U.S. https://www.apmresearchlab.org/covid/deaths-by-race

[7] COVID-19 in Racial and Ethnic Minority Groups, https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/need-extra-precautions/racial-ethnic-minorities.html 

[8] Morte por coronavírus em Miguel Pereira ressalta riscos e provoca debates, https://br.reuters.com/article/idBRKBN21B2S3-OBRTP 

[9] New York City bus drivers are being hit the hardest by deaths as COVID-19 devastates the MTA https://www.businessinsider.com/new-york-city-bus-drivers-most-deaths-covid-19-mta-2020-4

[10] Centros de Controle e Prevenção de Doenças

[11] A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) é uma sociedade científica cujo papel principal se dá no âmbito do desenvolvimento de uma especialidade médica que presta atendimento de excelência às condições clínicas mais prevalentes de pessoas e populações. Os estudos mencionados acima são resultado do grupo de trabalho Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, disponível em https://www.sbmfc.org.br/noticias/gt-de-saude-da-populacao-negra-manifestacao-sobre-ausencia-de-dados-da-covid-19-desagregados-por-raca-cor/


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