Foi Spike Lee — diretor de “Faça a coisa certa” (1989), “Malcolm X” (1992), “Infiltrado na Klan” (2018), “Destacamento Blood” (2020) — quem cantou a pedra no próprio domingo, 21 de julho, em que Joe Biden tirou o pé do projeto de reeleição e empurrou a vice aos leões. Sob uma foto presidencial de Kamala Harris, o cineasta escreveu numa rede social: “Once again a sista comes to da recue” (“Mais uma vez, uma mana vem em resgate”, em tradução livre). Bingo.
Quando se candidatou à Casa Branca, em 2020, numa espécie de frente ampla à americana para deter a ameaça que Donald Trump, eleito em 2016, já representava para a democracia, Biden não pretendia cumprir mais de um mandato. Seria o comandante em chefe de um período de transição para a normalidade, nos moldes do que se deu no Brasil, a partir da eleição de 2022. Em plena onda de manifestações da juventude negra contra a violência policial, após o assassinato de George Floyd por asfixia, sacou como vice uma senadora afro-asiática em primeiro mandato, ex-procuradora-geral da Califórnia, Kamala Harris.
A chapa decolou, e a dupla Biden-Harris mandou de volta a Mar-a-Lago, na Flórida, o presidente que não só rechaçou a derrota, como incitou manifestantes a invadir o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, dia em que a vitória adversária seria ratificada pelos parlamentares. O rastro de destruição, assemelhado ao que se veria no 8 de janeiro de 2023 em Brasília, deixou nos Estados Unidos, além de dezenas de presos, cinco mortos.
Um par de anos atrás, Biden mudou de ideia sobre o mandato único. Num misto de arrogância e euforia pelos bons resultados da gestão nos indicadores econômicos (PIB, desemprego e inflação) e nos investimentos para a transição energética, abafou a tradição democrata de submeter candidatos à Presidência a prévias. Usou a prerrogativa de função para lançar-se à reeleição.
Levou o projeto até não ser possível disfarçar as dificuldades cognitivas que embarreiravam o sonho de quatro anos mais no Salão Oval. Pressionado pela opinião pública, por companheiros de partido e até por doadores de campanha, desistiu da candidatura e, horas depois, endossou a vice como substituta. Kamala foi içada a cabeça de chapa do Partido Democrata a pouco mais de cem dias da eleição, marcada para 5 de novembro.
Enfrentaria o mesmo Donald Trump, bilionário ultramidiático que vencera a senadora e ex-primeira-dama Hillary Clinton, em 2016; nunca deixou de ser candidato; aparecia como favorito nas pesquisas diante de Biden; jamais deixou de inflamar massas com mentiras, xenofobia, racismo e misoginia. Kamala emprestou vitalidade à campanha democrata, a ponto de aparecer à frente do adversário em vários momentos; arrecadou volume inédito de doações, na casa de bilhões de dólares; peregrinou por estados-chave; reuniu apoio de uma constelação de artistas; pôs o casal Barack e Michelle Obama em palanques e filmes publicitários.
Kamala deixou que aliados lembrassem ao eleitorado que os Estados Unidos poderiam levar à Casa Branca a primeira mulher — e não branca. Em palanques e entrevistas, não tratou do próprio gênero nem da identidade racial, como se fosse possível torná-los imperceptíveis na disputa ao cargo político mais importante do planeta. Dirigiu-se, sobretudo, ao eleitorado feminino tratando de direitos sexuais e reprodutivos, transferência de renda para famílias com bebês, subsídio para compra do primeiro imóvel, valorização do trabalho formal. E normalidade democrática, no país que deixou impune o incitador da invasão à Casa Legislativa.
Teve o cuidado de não desqualificar o presidente que a tornou vice e sucessora indicada, quando estava evidente que o eleitorado escancarou aos democratas que “ninguém come PIB, come alimentos”, como nos ensinou, tempos atrás, a professora Maria da Conceição Tavares (1930-2024), economista e ex-deputada federal. Quando chegou ao fim a política de renda mínima universal instituída para enfrentar a pandemia, as famílias americanas se deram conta de que o custo de vida havia parado de subir, mas não recuara; as prestações dos empréstimos imobiliários e as faturas do cartão de crédito dispararam com os juros altos; o salário já não comprava o mesmo de outrora.
— Estava muito clara a frustração das pessoas com a economia. Houve queda absoluta de poder de compra. Representatividade fica em segundo plano quando as condições de sobrevivência desapareceram — analisa o economista Rogerio Studart, ex-diretor para o Brasil no BID e no Banco Mundial, que visitou um sem-número de lares na Pensilvânia no período eleitoral.
Trump sempre foi favorito. Surfou bem a onda de insatisfação com a falta de renda e as condições do mercado de trabalho — mais que isso, alimentou-a. Teve uma vitória acachapante. Já tinha seis de nove juízes da Suprema Corte. Levou, além da Casa Branca, maioria na Câmara e no Senado, prometendo deportar milhões de imigrantes; impor tarifaço (obviamento inflacionário) a importações; em tempos de “turbilhão climático”, nas palavras da ministra brasileira do Meio Ambiente, Marina Silva, deixar de lado a transição energética.
Porque 20% dos homens negros e metade dos latinos votaram em Trump, há quem diga que a culpa é do identitarismo. É como chamam, no Brasil, mulheres, pretos, indígenas, LGBTQIA+ que ousam reivindicar participação na vida pública, tal qual têm — e sempre tiveram — os homens brancos. Estes nunca arredam pé, exceto quanto a derrota é certa.