Da maternidade que desejamos a que alcançamos, desde que humanizada.

Sim, eu tinha escolha em parir nos melhores hospitais em São Paulo, contratar as melhores equipes médicas. Na minha trigésima semana, de tanto tentaram me persuadir, despertou o medo e até entrei em uma crise, neste momento, disse ao meu marido: “quero voltar e ter o bebê em São Paulo”. Ele conversou comigo, buscou compreender o que eu estava sentindo e decidimos permanecer na Bahia.

Escolhemos parir no recém-inaugurado Hospital Materno Infantil, em Ilhéus, há uma hora e meia da nossa casa em Itacaré, na região sul da Bahia. Eu e meu marido construímos nossa gestação aqui, em meio à natureza, longe dos noticiários sobre a pandemia, guerras e as bizarrices do Bolsonaro e seu governo. Conhecemos muitos profissionais – doula, fisioterapeuta pélvica, osteopata, massagista, em sua maioria, pessoas de outros estados do Brasil, que, assim como nós, cansaram de sobreviver nas cidades grandes e escolheram viver e ter qualidade de vida. Talvez não seja o mesmo cardápio de serviços que eu teria em São Paulo, mas era o suficiente para o que precisávamos.

Por que preferimos o SUS aos melhores hospitais particulares em São Paulo? Consideramos que a possibilidade do parto resultar em uma cesárea agendada, em qualquer hospital particular, é de mais de 75%, dados apontam que grande parte dos médicos particulares tem mais de 80% de casos de parto via cesarianas. Logo, a probabilidade de via a ser parte dessa estatística, sem necessidade, e de sofrer violência obstétrica parecia-nos muito alta. Buscávamos um parto humanizado.

A visão brasileira a respeito está desajustada. Para muitas pessoas, o parto humanizado significa um parto normal, a qualquer custo, com uma sala com banheira, bolas de pilates e alguns instrumentos que podem ajudar no parto. Há o pressuposto de que qualquer mulher é capaz de parir e, dessa forma, certa pressão para que todas as mulheres, a qualquer custo, tenham um parto normal, muitas vezes julgando-se negativamente àquelas que decidem e escolhem por uma cirurgia cesariana.

No entanto, o parto humanizado tem baixa relação com a via pela qual o bebê virá ao mundo, estando determinado, principalmente, pelo protagonismo da mulher. Isto implica no respeito as suas escolhas e tem a ver com o atendimento, com a forma de se tratar, comunicar e respeitar a mulher e seu (sua) acompanhante. Em São Paulo, este tipo de atendimento virou uma boutique, para poucos, e há uma pressão e idealização sobre um parto que, muitas vezes, é o que a mulher quer, mas pode não ser o que ela necessita.

Ahhhh! Mas e o plano de saúde? As enfermeiras e os médicos não são pagos para esperar a mulher ficar horas em trabalho de parto até o bebê nascer. Além disso, poucos médicos aceitam que a mulher seja a protagonista e não eles, ou seja, em sua maioria, poucos médicos não fazem intervenções e permitem que o parto flua como ele tem que ser.

Eu escolhi ser a protagonista do meu parto e a escolha pelo hospital foi fundamental neste sentido. A equipa deste hospital almeja ser referência em atendimento humanizado no Brasil, e certamente podem ser. Nossa primeira visita ao hospital foi em janeiro e fomos muito bem recebidos. As assistentes sociais que nos atenderam, explicaram como funcionava tudo e agendaram um encontro com a chefe de enfermagem. Quando voltamos, a enfermeira obstetra tirou todas as nossas dúvidas sobre o plano de parto e nos mostrou as instalações do hospital. Voltamos um mês depois com o plano de parto elaborado por nós, que foi muito bem recebido pelas assistentes sociais.

Neste plano, contei sobre a minha história, sobre o porquê da minha escolha pelo hospital e como eu queria que fosse o meu parto e os procedimentos que eu não aceitava de forma alguma que fizessem comigo e com meu bebê. É importante lembrar que um plano de parto é como um GPS, ele mostra um caminho, porém a rota pode mudar por diversos motivos, o importante é chegar na meta, que é o bebê nascer em segurança. Então, em meu plano, além do parto normal, eu tinha como opção o parto normal induzido, bem como a possibilidade em ir para uma cesárea.

Após as 40 semanas de gestação, eu comecei as induções naturais, com banho de ervas, acupuntura, óleo de prímula para amolecer o colo do útero, mas não tive sucesso, então, conforme o plano de parto, demos entrada no hospital com 41+2 para iniciar a indução. A médica, que nos recebeu, fez os exames e analisou, disse que eu não precisava começar a indução, que eu estava bem e o bebê também, portanto, poderia ir para casa e voltar em 2 dias.

Se eu vivesse em um ambiente sem interferência externa, eu talvez esperasse, mas como tinha me colocado um limite e havia uma grande pressão familiar, respeitei o meu plano de parto e escolhi ser internada para começar a indução. Mesmo sabendo que estávamos bem, a partir daquele momento, eu não estava mais disposta a assumir o risco de qualquer problema acontecer.

Tive que escolher entre a doula e meu marido para entrar comigo, pois o hospital ainda não aceita o acompanhante mais a doula. Escolhi o João, claro, não poderia ficar longe dele. Infelizmente, como eu iria induzir, não poderia ir para a sala bonita, com banheira, bolas de pilates e diversos apetrechos que contribuem para um parto mais leve. Fui colocada em uma sala compartilhada com mais duas mulheres e pudemos entrar com tudo o que quisemos, as enfermeiras foram muito atenciosas e explicaram passo a passo para nós, sobre os procedimentos e em momento algum fizeram toques, respeitando o meu plano de parto.

Foi servido alimentação para mim e para o João e havia uma poltrona bem confortável para ele pernoitar, a comida, aliás, era muito boa. Começamos a indução, não senti o primeiro comprimido, então conseguimos dormir e descansar, já vínhamos de uma noite intensa de indução natural. Seis horas depois, outro comprimido, as cólicas começaram. Seis horas depois mais um e só 2cm de dilatação. Já estava muito cansada e, por mais que eu estivesse com meu psicológico bem e entregue ao parto, o meu racional começou a tomar conta de mim, devido à exaustão física.

Nesse hospital ainda não tem analgesia (anestesia epidural), já sabia disso, não adiantava pedir. Nossa médica já tinha alertado que aqui nessa região Ilhéus-Itabuna não tem nenhuma anestesia epidural, nem em hospitais particulares e que se isso fosse importante para mim, deveria ir pra São Paulo ou Salvador. Como eu idealizei um parto extraordinário, na época, a mulher maravilha aqui achou que – com certeza – forte como sou, não iria precisar de uma anestesia. Quando eu nasci, deram anestesia geral em minha mãe e ela não me viu nascer. Em minha arrogância em querer fazer diferente e desejando que o bebê nascesse de uma maneira a mais natural possível, eu me convenci que não iria precisar da anestesia.

Usamos óleos essenciais para amenizar a dor. Mas, é uma dor que remete a lealdades profundas com as mulheres da família, que é além do físico, é uma dor que pega na alma. Perguntava ao Universo quem poderia me ajudar naquele momento, o que mais era possível fazer e que eu não estava considerando. Então, pouco tempo depois, apareceu em nossa sala, uma nova médica, Dra. Tainá, uma mulher, amorosa, atenciosa, inteligentíssima. Apresentou-se, disse que leu o plano de parto, autorizou a doula a entrar e explicou, calmamente, que ficaria com o meu caso e que os comprimidos iriam ser a cada 4h, para melhorar o progresso da dilatação. A doula entrou e me ajudou demais com as massagens e a amenizar a dor.

Com muito custo, cheguei à dilatação de 4cm. Pedi analgesia, precisava pedir algo, e recebi um “nesse hospital ainda não tem”. Horas depois, conversei com a médica, disse que não aguentava mais, pedi cesárea.

Lindamente, ela fez o possível para eu desistir da cesárea, fez um trabalho impecável para me motivar a continuar, eu sabia que não era caso de cesárea, contudo, honestamente, percebi que não estava preparada para um parto normal. Senti que continuar iria me traumatizar, que o custo poderia ser muito alto para mim, o que poderia impactar no meu vínculo com a filha/filho. Com humildade, disse a ela que desistia, que não aguentava insistir. Meu marido e a doula buscaram também negociar comigo para eu continuar. Negociei mais um toque, decidida de que se não houvesse progresso, iria para a cesárea.

Cheguei à dilatação 5 após 30 horas e, finalmente, a médica agendou a cesárea. Por eu não ser um caso de cesárea, ela precisou justificar a realização do procedimento, e eu entrava assim na porcentagem das cesárias desnecessárias, de uma mulher que desistiu da dor e optou pela cirurgia.

O importante é que me senti respeitada por toda a equipe médica, eles realmente leram meu plano de parto e me avisavam todo o tempo sobre o que era possível e o que não era. Tinha idealizado um parto natural, eles buscaram atender meu pedido, mas eu não consegui. E como já tinha entrado em indução, a cesárea implicava no risco de sangrar bastante. O bebezinho estava bem e saudável, mas muitas coisas do plano de parto teriam que ser adaptadas para a minha segurança.

Foi a primeira vez que eu entrei em um centro cirúrgico. Todos foram amorosos comigo e fui muito respeitada. Conhecer o anestesista foi maravilhoso, eu implorava pela anestesia, quando a recebi, foi orgástico, minha energia mudou.

Na sala, parecia que eu estava no céu, cheia de anjos e arcanjos. Eles iam me explicando a todo momento o que ia acontecer. De repente, eu senti uma leveza na barriga, meu marido gritava “ele tá vindo, ele tá vindo!!!”. A Dra. Tainá baixou o tecido, escondeu o sexo e contou até três e todos gritaram “é uma menina!”.

Não consegui três horas de golden hour, mas consegui cinco minutos com minha filha e com o meu marido que foram surreais. Consegui ouvir a playlist do nascimento, eram nossas músicas sendo tocadas. Não fui amarrada, fiquei o mínimo possível no centro cirúrgico e minha filha mamou nos primeiros vinte minutos de vida.

A injeção de vitamina K foi dada com ela mamando.

Ficamos 48 horas no hospital, em momento algum tiraram ela de perto de mim. Ela estava ali, sempre comigo. Passou obstetra, psicólogo, consultor de amamentação, nutricionista, pediatra. Bea nasceu com glicemia baixa, demos fórmula, ela pegou melhor no peito e ficou bem. Pedi que não fosse dado banho, queria dar só em casa e respeitaram. As enfermeiras estavam sempre disponíveis e, ali mesmo, no hospital, registramos nossa Beatrice no cartório.

Recebemos alta, muito carinho e um “até logo” sem conta para pagar.

Faço questão de ressaltar que Beatrice nasceu em meio a um Brasil plural que quero ver despontar. Bem diferente dos corredores dos hospitais particulares, nesse hospital tem uma diversidade de pessoas, seja de gênero, raça, cor, regiões diferentes do país.

Escutei loucuras de pessoas por termos escolhido ter nossa bebezinha no SUS. Chegaram a ouvir que havia tirado vaga de quem precisava. Além de pagar imposto, ter direito por ser cidadã brasileira, ainda preciso escutar que estou tirando a vaga de alguém. Engraçado é que a gente quer exigir que os políticos usem o SUS, mas nós mesmos não temos coragem de usar, nunca entramos em um hospital público e julgamos ele e toda equipe médica, sem conhecer. Pude conhecer e fui muito bem atendida.

Apesar do meu convênio particular, escolhi parir no SUS e, se tivesse outro filho, teria no mesmo hospital!

Foi mágico, respeitoso e humanizado. Gratidão ao estado da Bahia por essa mega infraestrutura em Ilhéus. Gratidão SUS.


Leticia Nigro Leme

Internacionalista, Economista, Pós Graduada em Administração e Gestão de Negócios.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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