Desigualdade não é detalhe

A reforma da Previdência em tramitação não leva em conta  a situação dos mais pobres

por  Flávia Oliveira no O Globo

Foto: Marta Azevedo

O defeito da reforma da Previdência proposta pelo governo de Michel Temer em fins de 2016 — e, agora, assombrada por uma centena e meia de emendas parlamentares — está menos na necessidade que no conteúdo. O debate sobre a mudança de regras na concessão de aposentadorias e pensões divide o país entre os que a consideram essencial, desejável ou dispensável. O que os dois primeiros grupos não conseguiram explicar à sociedade brasileira é por que motivo a conta será paga por quem menos tem. É essa a consequência de, na formulação do projeto, a burocracia ter desprezado as diferentes dimensões da desigualdade brasileira. Assim, ignora exatamente o fator que forjou — e ainda molda — essas terras. Isso não é detalhe.

Vivêssemos na Suécia, onde o Índice de Gini (principal medidor da desigualdade de renda) é metade do brasileiro, este artigo sequer precisaria ser escrito. Mas — aquele abraço à torcida do Flamengo, da qual tomei o bordão — isso aqui é Brasil. Nas bandas de cá, tratar desigualmente os desiguais é que faz diferença. A proposta de reforma ignora assimetrias de gênero, raça, região e acesso ao mercado de trabalho. De quebra, fratura a rede de proteção que livra da pobreza extrema idosos e pessoas portadoras de deficiência.

O Brasil, IBGE à frente, produz informações socioeconômicas suficientes para a equipe econômica desenhar um modelo de previdência e seguridade que, para variar, privilegie quem menos tem. Os arquitetos da reforma, contudo, preferiram, por medo dos enfrentamentos processuais, assegurar direitos adquiridos e despejar a fatura no colo dos mais pobres, deixando para trás tanto o conceito de justiça social quanto os efeitos pró-cíclicos da transferência de renda. Sete em cada dez cidades brasileiras têm nas aposentadorias e pensões um volume de recursos superior ao que recebem do Fundo de Participação dos Municípios, segundo estudo do Anfip-Dieese. Sem a Previdência, portanto, irão a nocaute.

A reforma que está em tramitação no Congresso Nacional não leva em conta que os brasileiros mais pobres, em particular mulheres e negros, começam a trabalhar muito cedo, mas a contribuir mais tarde. Do emprego sem carteira assinada, da ocupação autônoma e da atividade auxiliar em empreendimento familiar 44% das mulheres brasileiras tiram o sustento. Significa que, mais por distorções do mercado que por vontade própria, estão em atividade profissional, mas não recolhem ao INSS. Sem falar na jornada semanal feminina, que supera em sete horas e meia a dos homens, informou o Ipea, em razão das atribuições domésticas e familiares. É mais trabalho sem contribuição, que não vale para a Previdência.

Mulheres, negros e jovens são os três grupos populacionais com as maiores taxas de desemprego e os menores rendimentos. Portanto, além de quase sempre subempregados no começo de carreira, eles passam mais tempo à procura de ocupação e têm baixa remuneração. É a essa gente que o governo brasileiro quer impor dez anos mais de contribuição (de 15 para 25 anos), não de trabalho, e idade mínima de 65 anos. Quem quiser se aposentar pelo teto aos 65 terá de contribuir por 49 anos, a partir dos 16. Regras como essas fazem da aposentadoria um sonho distante.

Mas a reforma também dificulta o acesso aos benefícios dos que estão abaixo da linha da pobreza. O projeto eleva a idade para receber o benefício de prestação continuada. Se não conseguir se aposentar, o idoso com renda domiciliar per capita inferior a um quarto do salário mínimo só fará jus ao repasse governamental ao completar 70 anos, em vez dos atuais 65. O pagamento não mais será vinculado ao piso nacional. Seguirá valor arbitrado pelo governo e corrigido por índice de inflação — ou seja, ficará abaixo do mínimo, hoje de R$ 937.

Por fim, a idade mínima única, sem atenuantes regionais, vai impor injustiça adicional aos brasileiros do Norte, do Nordeste e das periferias e das comunidades populares nos grandes centros. A dispersão na esperança de vida é conhecida: maranhenses vivem 70,3 anos, catarinenses, 78,7. Mas há também diferenças no total de idosos nas unidades da federação. Segundo o IBGE, estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul têm hoje 21,7% dos habitantes com 60 anos ou mais de idade. No outro extremo (geográfico e etário) estão Amapá (8,5%), Roraima (10,8%) e Amazonas (11,4%). A proporção de idosos é baixíssima, porque não é tarefa fácil envelhecer por lá. Impor uma idade mínima única ao país limará o extremo Norte dos repasses previdenciários.

Tantas desigualdades deveriam ser consideradas, em vez de ignoradas. É justo.

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