Deus está com os oprimidos, não com aqueles que apoiam o genocídio negro

Vivemos o fim dos tempos, do mundo, e de vidas. O Brasil que conhecemos está terminando ciclos: universidades públicas com risco de encerrarem as atividades, mais de 400 mil mortes por Covid-19, desemprego batendo recorde com 14 milhões de pessoas desocupadas, insegurança alimentar chegando na casa dos 125 milhões de brasileiros e o sistema de saúde pública em colapso. Enquanto isso, o presidente da república encomenda o quilo da picanha a R$ 1.799.

O Brasil do fim do mundo é o país que, no pior momento da pandemia, fez uma operação policial que assassinou aproximadamente 30 pessoas. É um país que amanhece com gente negra e periférica lavando sangue da sua sala e das suas calçadas. É onde homens brancos à frente de grandes corporações e do governo autorizam verdadeiras chacinas .

Nós crentes costumamos dizer diante da tragédia: “é o fim do mundo, Jesus está voltando”. Se olharmos os dados sabemos que os assassinatos nas terras indígenas e nas operações policiais aumentaram consideravelmente. É o Estado lutando pelo fim das aldeias, dos quilombos, das favelas e dos territórios periféricos. São as instituições brancas tentando acabar com os mundos que não são brancos.

O povo negro desse país sabe o que é o gosto da morte, do sangue e da fome. Sabe onde é o lugar que “não existe”. Precisamos falar desse lugar que não existe, esse lugar que não precisa de mandado judicial para entrar nas casas, pois a execução é sumária. Estamos tentando sobreviver ao fim do nosso mundo há séculos.

A experiência negra evangélica tem como futuro uma realidade que se levanta contra o que acontece todos os dias nas periferias do Brasil. Na cosmologia cristã é comum depois da degradação vir um sopro de vida e esperança, que seria a renovação ou avivamento. É este momento em que o Deus cristão age na história, articula seus fiéis em uma ação de restauração da atual situação.

Podemos pensar isso em diversos textos bíblicos que podem ser exemplos deste movimento, seja na terra após dilúvio, ou na libertação dos escravizados no Egito, depois do exílio do povo hebreu quando foi escravizado pelos babilônicos, e as imagens apocalípticas de uma nova realidade pós destruição.

Pesquisas afirmam que daqui a 20 anos seremos um país terrivelmente evangélico. Este lugar majoritário em que estão os evangélicos é lido por muitos como um fruto de um avivamento, e é assim que se justificam, pelo menos teologicamente, as articulações políticas da bancada evangélica com as políticas conservadoras.

Entretanto, segundo a cosmologia bíblica, está mais para um desvio do que para um avivamento. O Deus bíblico é o Deus dos condenados da terra, como definidos pelo revolucionário Frantz Fanon: os despossuídos, aqueles chamados de colonizados, desumanizados e enclausurados. É nestes que o Deus cristão age e é por eles que este Deus articula a história.

Se nos atentarmos para os textos veremos que o imperialismo egípcio que matou os filhos hebreus e os escravizou, Deus fica ao lado dos escravizados e os liberta. O Deus revelado nos textos bíblicos não se assenta nas mesas dos poderosos, mas caminha e manifesta o sagrado entre estes que chamamos de condenados da terra.

Assim, podemos perceber que muitos evangélicos se sentaram na mesa de Herodes e lavam suas mãos com Pilatos diante do genocídio colonial que este pais tem feito com os corpos negros, indígenas e pobres. Estão carregando em sua mente a verdadeira imagem ou ideologia da besta e perpetrando o seu mal.Como os religiosos da época de Jesus, matamos e assassinamos o povo em que Cristo se revela hoje.

Mas nem tudo está perdido. Nem todos os evangélicos beijaram a imagem da besta, ou se submetem ao governo de César, mas a ele fazem frente como fez nosso Senhor que morreu sob este poder e o venceu ao reviver. Acreditamos que o avivamento está acontecendo e ele é negro, é dos pobres e das mulheres.

Mesmo que haja entre o poder lideranças “anticristãs” que se reivindicam como tal, o espírito que moveu as águas lá na criação, está movendo as massas para a revolução, para se criar algo novo. Vemos uma igreja potente na periferia das nossas cidades, aquelas portinhas pequenas que criam um senso de comunidade, ou aqueles e aquelas que caminham nos sistemas prisionais dando ajuda a estes grupos, fora as mulheres negras sobretudo que compõem movimentos como as mães de Maio.

Também vemos uma juventude negra articulando políticas e iniciativas a partir de sua fé. O Movimento Negro Evangélico, instituição histórica, tem se expandido a cada ano nos estados. Temos o Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos, há movimentos de mulheres negras evangélicas como o Fórum de Mulheres Negras Cristãs. Há o Cuxe movimento negro evangélico, de Salvador. Temos também a Rede de Mulheres Negras Evangélicas do Brasil, que faz anualmente o Encontro Nacional de Negras Cristãs, e o Coletivo Zaurildas, que fala sobre um feminismo negro na experiência evangélica e que produziu o primeiro livro brasileiro totalmente escrito, produzido e editado por mulheres negras evangélicas.

Dentro da igreja também têm se construído espaços e ferramentas importantes, como a Pastoral Contra o Racismo da Igreja Metodista e mais recentemente a Pastoral Abraço Negro da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Temos coletivos e iniciativas mais relacionadas à juventude como “O Que Tem no Brasil”, ou podcasts como “O Hebreu” ou “Redomas”.

Este movimento não se restringe aos movimentos negros evangélicos, mas a pauta racial está avançando no país. Seja no meio religioso, seja entre os grupos civis. Em nosso olhar, o Deus dos condenados da terra também está agindo ali. Cremos que é ele que dá força às Mães de Maio, que mobiliza o Movimento Negro Unificado, os movimentos negros universitários e tantas outras frentes. É seu Espírito anárquico que nos move e nos chama a ação.

Assim como não haverá democracia no Brasil enquanto houver racismo, acreditamos que o futuro do país está relacionado com a fé cristã, seja para o bem, seja para o mal. Foi esta fé que “legitimou” este país e que ainda está em diálogo com os que se assentam no poder.

Estamos diante de um país que caminha para ser de maioria evangélica, mas cabe a nós saber se este futuro será terrível ou glorioso; se haverá uma realidade infernal a se sobreviver ou uma realidade nova, reconstruída a partir da justiça que gera a paz. Cremos no futuro mudado e é por isso que lutamos, porque temos esperança, pois vemos o avivamento chegando, e ele é negro e periférico.

 

Timóteo André

É ativista da Aliança Bíblica Universitária, Coletivo Negrada e Movimento Negro Evangélico. É ilustrador no @__theo.art e estudante de ciências sociais na Universidade Federal do Espírito Santo e membro da Paróquia Anglicana Âncora

Jackson Augusto

É batista, integrante da coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico, membro do Miqueias Jovem América Latina, criador de conteúdo no canal Afrocrente e articulador nacional do PerifaConnection

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