E eu não sou um negro?

Tenha cuidado, há um ódio curtido em fogo brando

“Os miseráveis, os rotos / São as flores dos esgotos”

(“Litania dos Pobres”; Cruz e Sousa)

Eles combinaram de nos matar, e nós combinamos o quê, para ontem, para já?

A vida de Kathlen Romeu era apenas um cisco no olho do policial que a matou. Incomodou sua visão; era preciso eliminar o incômodo. Sob o tsunami das mesmas (in)justificativas, do Estado e do atirador, nenhuma lágrima rolou, nenhum pedido de desculpas: o patrono das maldades é mesmo o Estado de Direito.

O detalhe é que o incômodo tinha vida e nome: uma jovem mulher negra, de 24 anos, e grávida de quatro meses. O policial, qualquer um deles, não tem filhos, irmãos, mãe, parentes? É preciso ter cautela ao sair de casa sendo negro ou negra no Brasil. Há um ódio curtido em fogo brando, herança de tempos coloniais e da maldita escravidão, atípica e longeva. Esse ódio atravessa séculos, com sua fúria e gosto de sangue nesta década do 21.

Ao assumirmos a negritude a cada dia, com gesto e atitude, de cabeça erguida e autoestima —não mais só o turbante nos representa, o cabelo crespo, as batas africanas, as roupas coloridas—, mais nos caçam, nos matam e, como ratos dos esgotos (ó, Cruz e Sousa!), escarneiam sobre nossos corpos trucidados pelas balas de fuzis.

Alguém como eu deve indagar: “E eu não sou um negro?”. É, respondo, e deve tomar todo o cuidado, pois você —“negro, negro, negro!”— é o próximo da vez, o número, a base da estatística da caça: a mesma que ceifou 27 seres humanos faz pouco tempo no Jacarezinho. Ceifa é modo de dizer: aquilo foi caçada animal, como ocorre nas piores guerras, desde a Idade Média aos massacres de Namíbia, Ruanda ou na centenária ferida (ainda aberta) de Tulsa (EUA), onde, em poucas horas, em 1921, chamas racistas destruíram 35 quarteirões, fizeram 300 mortos e desabrigaram mais de 800 famílias.

Se vidas negras importam de verdade, elas importam a quem? Que estatística é essa que, há 133 anos da abolição, decantada pela República, o lado que mais perde, que mais tem baixa na luta fraticida, é o da população negra, onde desigualdade é sinônimo de cor da pele e de dor.

Por que negros são mais vítimas de homicídio do que brancos? Brancos poderiam ajudar a responder tal pergunta; afinal, eles morrem menos, vivem com mais dignidade, têm melhores escolas, tempo de estudos, garimpam altos empregos e bons salários.

Essa desvantagem parece a mesma em todo o mundo. Lição que é rotineira no Brasil. Nos Estados Unidos, o julgamento do brutal assassinato de George Floyd muito repercutiu, mas ainda tem pouco aprendizado para o povo americano. Kamala Harris fala grosso sobre imigração; já Joe Biden está cortando um dobrado para amenizar o racismo dentro do seu país.

O mundo, o Brasil e o Rio de Janeiro precisam ouvir atentamente Nelson Mandela, quando, em 1964, diante do tribunal que o condenou, em Rivonia, disse: “Lutei contra a dominação branca e contra a dominação negra. Defendi o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia e oportunidades iguais. É um ideal para o qual espero viver e conseguir realizar. Mas, se for preciso, é um ideal para o qual estou disposto a morrer”.

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...