Não é difícil encontrar em circulação nas redes sociais nomes de grandes intelectuais negros que, especialmente entre os séculos XIX e XX, fizeram história enquanto literatos, jornalistas ou ativistas. Letra a letra, eles denunciaram as mazelas da escravidão ajudando a tecer as redes do abolicionismo e reivindicaram melhores condições à população negra que gradualmente deixava o cativeiro ou já se encontrava em liberdade. José do Patrocínio, André Rebouças, Maria Firmina dos Reis e Luiz Gama estão entre esses nomes. Recentemente, o filme Doutor Gama, de Jeferson De, trouxe à cena a atuação deste último nos tribunais para livrar indivíduos ilegalmente escravizados. Um aspecto comum em tais sujeitos era, em algum momento de suas vidas, ter tido acesso à instrução primária, secundária e, por vezes, superior, contornando as tantas adversidades da estrutura educacional da época e tornando estes saberes grandes aliados na luta pela emancipação e pela cidadania negra.
De outro modo, as trajetórias de intelectuais negros conduzem a indagações importantes acerca das possibilidades da população negra para o acesso ao ensino básico. Afinal, até que ponto contribuiríamos com este debate interpretando esses casos apenas pela ótica da excepcionalidade? E quando tocamos no assunto, uma série de outros questionamentos e debates vêm à tona, como as políticas afirmativas e a necessidade latente de se diminuir desigualdades raciais no acesso à educação. Mais uma vez cabe questionar: quais foram, de fato, as circunstâncias que, no passado, operaram de modo a cercear indivíduos negros do acesso à educação? Negros e negras eram proibidos de frequentar escolas? Se era assim, como explicar a existência dos sujeitos de cor que circularam nos universos letrados? Seriam todos eles autodidatas, protegidos ou se instruíram de forma clandestina?
O olhar atento à documentação histórica pode sugerir nortes interessantes nestas questões. Primeiro, revelam que o processo de exclusão de pessoas negras às vias oficiais de ensino sempre obedeceu à lógica operacional da racialização à brasileira, onde as sutilezas e dissimulações operaram de modo a aparentar a perfeita harmonia e igualdade de condições. Dito de outra forma, na maior parte das vezes não era necessário haver leis que proibissem a escolarização dos negros. As barreiras no acesso ao ensino se construíam nos bastidores da organização da instrução pública, pela ação dos atores históricos e outros condicionantes nem sempre tão explícitos. Segundo, na contrapartida de todo processo de exclusão, uma grande tradição de lutas pelo acesso à instrução foi construída pela população negra, desde os tempos da escravidão, ajudando a afirmar que a educação esteve entre os pilares das reivindicações trazidas durante a emancipação e também no pós-abolição.
Ser instruído no Brasil Império era sinal de distinção. Pelo recenseamento de 1872, mais de 80% dos habitantes do país eram analfabetos, embora a Constituição assegurasse a instrução pública primária como um direito de todos os cidadãos brasileiros. Para ser cidadão, era necessário ter nascido em território nacional, ser livre ou liberto. Escravizados, por não serem considerados cidadãos, não seriam autorizados a frequentar escolas públicas. Foi a partir destes postulados que nasceram as normativas destinadas ao regimento da instrução pública primária. Em casos excepcionais, como no Rio Grande do Sul, algumas medidas foram além do que estava previsto na carta magna, proibindo a escolarização aos “pretos”, ainda que “livres ou libertos”. A existência de tais extremos era reflexo da ausência de um código legal único, partido do governo central, destinado a normatizar o direito à instrução. Isso se dava em virtude da autonomia legislativa que dava aos poderes provinciais a tarefa de conduzir a administração do setor, produzindo variantes ao longo do país quanto aos critérios para se frequentar escolas. Mas na maioria dos casos, as províncias acabavam por seguir as regulamentações existentes na Corte e, nesse sentido, a mais importante delas foi decretada em 1854, conhecida como “Regulamento Couto Ferraz”, que entre outras medidas, tratou de reforçar o impedimento de escravizados frequentarem escolas públicas primárias.
Assim, tomando por referência as leis vigentes, na maior parte das províncias do Império a escolarização estava proibida apenas aos escravizados e estrangeiros. Seria este um indício de que estes sujeitos estariam tentando se infiltrar nas escolas à revelia do que estava imposto na Constituição? Possivelmente, e vamos aprofundar essa questão mais adiante. Antes, é preciso reforçar que nessa mesma época, quando tais proibições foram enfatizadas nas regulamentações próprias do ensino, mais que dois terços dos descendentes de africanos existentes no Brasil não mais estavam sob o jugo da escravidão. Ou seja, a maior parte dos negros era formada por livres e libertos e a educação era, portanto, um direito a eles assegurado. Mas se hoje ter direito garantido nas leis não representa muita coisa, podemos imaginar naquela época, quando a precariedade da estrutura de ensino era ainda mais grave e outros condicionantes como os cotidianos exaustivos de trabalho, na vida adulta e na infância, eram realidades muito presentes entre os setores populares.
Por falar em trabalho, durante o final do século XIX, o tema era supervalorizado nas discussões das elites e governantes sobre o futuro dos libertos e as expectativas de assimilação deles na sociedade livre. Pensava-se em projetos públicos que garantissem a manutenção das estratégias de dominação escravistas, para amenização dos receios da classe proprietária. Nesse sentido, a educação era vista como uma das vias de introjeção dos ideais de disciplina e valorização do trabalho, um verdadeiro antídoto para que os negros se mantivessem em lugar de sujeição e não “contaminassem” a sociedade com o que, acreditava-se, serem vícios, trazidos com eles. Logo, idealizava-se a esses sujeitos alternativas educacionais que valorizavam o ensino de ofícios, que além de ensinar a trabalhar também se encarregassem de moralizar e afastar possíveis perigos, como a vadiagem e a propensão ao crime, por exemplo. Típicos traços da racialização que não quer dizer seu nome.
Como exemplos de tais esforços, instituições filantrópicas e militares atuavam no sentido de acolherem os despossuídos e explorarem seus serviços enquanto aparentavam estar lhes encaminhando para a “educação” adequada. Ou seja, para os pobres, subalternizados, e aí estava compreendida a maior parte da população negra, os sentidos educacionais projetados pelos poderosos eram claros, tinham o propósito de encaminhar para o trabalho e manter as hierarquias da sociedade escravista. Por isso, diferiam drasticamente do que era proposto para os bem-nascidos, para quem os saberes humanistas, o ensino secundário e superior, figuravam como destino merecido, desta vez, para garantir seus lugares de mando.
Obviamente que outros significados de educação transitaram nos horizontes daqueles que vivenciavam a escravidão em seus presentes ou memórias. São várias as histórias que colocam famílias negras lutando contra recrutamentos, tutelas, e outras ações arbitrárias perpetradas pelo Estado ou particulares em vista de direcionar crianças negras a um tipo de educação que não correspondia às suas próprias expectativas. Em muitos casos, essa resistência se expressava no modo mais básico, vencendo adversidades do cotidiano para matricular seus filhos nas poucas escolas existentes. E a depender do quadro sócio-racial das muitas regiões brasileiras, crianças negras poderiam formar a maior parte dos matriculados. É o que indicam estudos para algumas localidades de Minas Gerais e Alagoas, por exemplo.
A questão ganhou contornos decisivos ao final do século XIX quando uma reforma no sistema eleitoral estabeleceu o critério de alfabetização para o acesso ao voto. Sem garantir as chances básicas de escolarização, a lei terminava por cercear os caminhos de cidadania aos setores marginalizados, especialmente às pessoas negras que, após a escravidão, não contaram com projetos de inclusão educacional. Na mesma época cresceram as reivindicações pelo ensino popular no país, protagonizadas não apenas pelos pais que desejavam ter seus filhos nas escolas, mas também pelos próprios adultos que sentiram a necessidade iminente da alfabetização e da instrução para participar ativamente das decisões políticas. O movimento pegou embalo nas campanhas abolicionistas, resultando em iniciativas de instrução popular que pulverizaram pelo Império no formato de escolas noturnas frequentadas em peso por trabalhadores, entre os quais muitos negros escravizados e libertos.
Eram espaços subsidiados por particulares, professores, ativistas, associações, ou mesmo pelo poder público, à exemplo do ocorrido no Paraná. Neste caso em específico, aproveitando dos incentivos de políticos pela escolarização de adultos, grupos populares, entre escravizados, libertos e outros negros livres compuseram abaixo-assinados que cobravam a abertura ou manutenção dos espaços noturnos de instrução. Ali também contamos com notícias de uma escola aberta e mantida por escravos e outras duas iniciativas encaminhadas por professores abolicionistas especialmente para os que viviam na condição de cativos. Em todos esses casos, é visível que a criação de oportunidades de instrução fora resultado de mobilizações envolvendo os próprios interessados pelo ensino, que já naquela época entendiam a educação escolar como um direito, mesmo que legalmente escravizados estivessem impedidos de frequentar escolas.
Outra forma de se autopromover a instrução básica era no interior de associações mutualistas e abolicionistas, que carregavam ou não o recorte racial para seleção dos sócios. A Sociedade Protetora dos Operários, por exemplo, fundada em Curitiba por um pedreiro ex-escravizado, manteve durante anos uma escola noturna para instrução de seus sócios. Tais espaços foram elementares nas lutas que visavam melhores condições aos que atravessavam o tumultuado caminho entre a escravidão e a liberdade, entre a liberdade e a cidadania. Por isso, a oferta de instrução quase sempre esteve entre as atividades exercidas e bem aproveitadas pelos associados ou mesmo por seus filhos. Seguindo as pistas dessas redes encontramos até mesmo irmandades negras oferecendo alternativas escolares, o que deixa muito claro que a educação era um objetivo a ser perseguido, entre os tantos direitos negados para a população negra. Dado o contexto, fica fácil perceber que os indivíduos que chegaram ao lugar de intelectualidade nessa época, não estavam sozinhos nas demandas que traziam. Pelo contrário, eram, de alguma maneira, conectados às redes de luta pela instrução, pela abolição e pela cidadania negra naquele período.
Não significa que esses caminhos de luta não fossem sinuosos. As escolas noturnas de adultos sofriam com as dificuldades financeiras para manter abertas as salas de aulas: faltavam subsídios para a remuneração de professores e a disponibilidade de espaços. Vale lembrar ainda que o quadro do ensino regular diurno permanecia extremamente excludente. Fatores como a distância das escolas, os cotidianos de trabalho infantil e as atualizações das dinâmicas de racialização seguiam dificultando a escolarização na infância. Foram comuns relatos do norte ao sul do país, denunciando a recusa de crianças negras, as violências simbólicas ou explícitas e as pressões de pais de crianças brancas para que segregações fossem praticadas. Na Corte, esse foi o motivo alegado por um professor “preto” para criar uma escola só com alunos de mesma designação racial, como evidenciado pela historiadora Adriana Maria Paulo da Silva. No Paraná, famílias brancas passaram a tirar seus filhos das escolas públicas depois que os ingênuos – filhos de mulher escravizada nascidos após a Lei do Ventre Livre – passaram a frequentá-las.
Por motivo semelhante, uma Comissão de Libertos da região fluminense do Paty de Alferes, em 1889, decidiu enviar um pedido diretamente ao político Rui Barbosa cobrando medidas para a educação dos seus filhos, pelo que havia sido prometido desde a Lei do Ventre Livre de 1871. Era amplamente sabido que as promessas de liberdade efetuadas nas campanhas de abolição vinham sendo cumpridas apenas parcialmente. Afinal, de que adiantava a condição de liberdade se tantos direitos continuavam negados? Não há dúvidas de que esse inconformismo foi aditivo crucial nas lutas vindouras, ao longo do século XX, que pleitearam a universalização do acesso ao ensino. Educação aqui não era apenas uma conquista em si, era também caminho para a cidadania.
Assista ao vídeo da historiadora Noemi Santos da Silva no Cultne.TV sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental:
EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI07 (9º ano: Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano – até 1964 – e das populações afrodescendentes); EF09HI09 (9º ano: Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais).
Ensino Médio:
EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas – expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes – incluindo as quilombolas – no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).
Noemi Santos da Silva
Doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); E-mail: noemihist@gmail.com; Instagram: @noemihist
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