Nos últimos dias a Folha de São Paulo, um dos principais jornais do país, tem publicado matérias e editoriais defendendo abertamente o fim das cotas raciais nas universidades públicas. O editorial utiliza, de maneira oportunista, um erro da banca de heteroidentificação da USP para atacar as cotas e, a partir disso, pautar a substituição das cotas raciais por cotas apenas sociais.
As cotas raciais foram sancionadas enquanto lei federal em agosto de 2012. De lá pra cá, cumpriu o seu objetivo de democratizar o acesso ao ensino superior público às pessoas negras que tiveram sua caminhada educacional impactadas pelo racismo. As pesquisas mostram que as cotas são um sucesso. De acordo com o IBGE, a lei de cotas aumentou em 400% o número de negros nas universidades. O Censo da Educação Superior também confirma que a participação de indígenas aumentou 842%. É exatamente isso que incomoda a elite brasileira: a universidade aos poucos – e com muita luta – tem deixado de ser apenas um espaço para a branquitude formar os seus herdeiros.
É verdade que existem limites nas bancas de heteroidentificação. Elas ainda são um instrumento bastante recente, sendo subproduto de uma conquista histórica que é a política de cotas. Portanto, sua implementação completou recentemente a primeira década e por isso, deve ser constantemente avaliada e aprimorada. Porém, as bancas têm cumprido um papel fundamental para barrar as fraudes nas cotas vinda daqueles que utilizam da autodeclaração para ocupar um lugar a qual não tem direito. A sua implementação nas universidades devem estar submetidas a avaliação de especialistas em relações étnico raciais e aliadas a critérios que compreendam historicamente a formação social do Brasil.
Podemos considerar, por exemplo, duas situações em que as bancas de heteroidentificação devem ser aprimoradas. A primeira é o caso da própria USP, que foi a última universidade pública do país a aderir a lei de cotas na graduação e pós graduação. Na Universidade de São Paulo a banca de heteroidentificação é feita de forma virtual, com a avaliação de fotos, o que dificulta uma análise fenotípica totalmente de acordo com a realidade. Outro elemento importante, é a própria formação dos membros da banca, que precisam considerar o processo de miscigenação brasileiro e entender que existe uma grande diversidade fenotípica do que é ser negro no Brasil.
As discussões sobre as cotas também passam por compreender o papel das cotas raciais e o papel das cotas sociais. A Folha de São Paulo sugere que é melhor substituir as cotas raciais por cotas sociais porque supostamente estas são “objetivas e mensuráveis”, diferente das raciais, que, a partir da banca, estariam “envoltas pelo manto da subjetividade”. O que o editorial parece não lembrar, é que o racismo estrutural é bastante objetivo e mensurável. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Entre os jovens de 14 a 29 anos que estão fora da escola, 71,7% são negros. Em relação aos desempregados, 65% são negros. Assim como os encarcerados que somam 68,2% da população negra. O único quadro negativo que foi possível reverter nas últimos anos foi no ensino superior público, onde pela primeira vez na história do país os negros passaram a ser maioria, graças as políticas afirmativas. Ao defender a extinção das cotas raciais, a Folha de São Paulo ignora o peso de mais de trezentos anos de escravidão e relativiza o impacto do maior crime humanitário nas suas gerações subsequentes.
Portanto, as cotas sociais não podem substituir as cotas raciais porque tratam de problemas diferentes. Você não contrata um pedreiro para atuar na função de cozinheiro. Da mesma forma, não se resolve um problema de raça apenas com uma solução social a partir da sua renda. A defesa da extinção das cotas raciais e substituição para cotas sociais não considera o racismo como elemento estruturante da nossa sociedade, que afeta o percurso educacional das pessoas negras. A proposta de cota somente social enfraquece as políticas afirmativas, na medida que também, é uma forma de retomar ideologicamente o mito da democracia racial e consequentemente retroceder em nossa identidade, afirmação e letramento racial.
Não é à toa esse ataque. Esse foi o ano em que conquistamos a revisão e ampliação da lei de cotas. Além da graduação, a ampliação da lei avança para garantir a inclusão da pós-graduação. Além dos estudantes negros e indígenas, também inclui os estudantes quilombolas, assim como outras vitórias importantes para efetivar uma maior permanência estudantil.
O movimento negro e o movimento estudantil seguirão defendendo as políticas afirmativas. Vai ter preto, indígena e quilombola com diploma na mão, e mais do que isso: queremos construir uma grande campanha pelas cotas para pessoas trans e travestis nas universidades públicas para democratizar ainda mais o acesso e construir uma educação popular, com a cara da maioria do nosso povo. A elite brasileira vai ter que nos engolir.
*Marina Amaral – Diretora de Movimentos Sociais da UNE, militante do Afronte e da Coalizão Negra por Direitos
FONTES:
²https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/03/cotas-sociais-nao-raciais.shtml
https://portal.fgv.br/artigos/negros-ainda-sao-maioria-rendimento-ate-2-salarios-minimos
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