Avaliação de mérito acadêmico, ações afirmativas e os 90 anos da USP

Alguns consideram que a fonte para a implementação de ações afirmativas nas universidades estadunidenses tenha sido a teoria da justiça de John Rawls. Eu penso que o ponto de partida foram os movimentos pelos direitos civis que antecederam e inspiraram os trabalhos desse teórico. Entretanto, concordo que a teoria de Rawls foi essencial para compreender que uma sociedade liberal justa deve distribuir bens primários de maneira equitativa, impedindo que o acesso a eles seja coibido por fatores ambientais, moralmente arbitrários, como as discriminações institucionalizadas, as loterias genéticas e a fortuna social.

Citando um especialista: “Existem três tipos de bens que são relevantes para uma teoria da justiça distributiva: bens que são passíveis de distribuição, tais como a renda, a riqueza, o acesso a oportunidades educacionais e ocupacionais e a provisão de serviços; bens que não podem ser distribuídos diretamente, mas que são afetados pela distribuição dos primeiros, tais como o conhecimento e o autorrespeito; e bens que não podem ser afetados pela distribuição de outros bens, tais como as capacidades físicas e mentais de cada pessoa”.

Diante de desigualdades decorrentes da distribuição inadequada dos bens primários, deve-se instituir/adotar remédios que impeçam que tais desigualdades se perpetuem e que a sociedade se torne injusta. As ações afirmativas são compreendidas como estratégias criadas para retificar/compensar as desigualdades sociais que são imerecidas e impedem o acesso de indivíduos às oportunidades, ao conhecimento e ao autorrespeito. Ou seja, são mecanismos de correção de uma distribuição inadequada dos bens primários e de tudo que resulta disso.

Contudo, ainda persistem argumentos que avaliam as ações afirmativas como políticas identitárias que ferem o mérito e afetam a excelência acadêmica quando, de fato, são e foram remédios criados pelo próprio modelo político liberal para retificar suas falhas. Além disso, ignoram que a discussão sobre mérito também foi contemplada nas teorias sobre justiça, sobre justiça distributiva e sobre equidade. Mérito está totalmente vinculado e atrelado com questões de justiça.

Avaliações de mérito sempre existiram. Não é aí que reside o problema. A questão é, nas sociedades contemporâneas, como avaliar o mérito de modo que as pessoas mais qualificadas tenham acesso às melhores posições sem que isso seja somente o reflexo de privilégios ou de fatores ambientais (loteria genética, discriminações sistemáticas, fortuna social)? Para que haja meritocracia é necessária, ainda segundo Álvaro de Vita, “a neutralização de todos os fatores ambientais que condicionam as oportunidades que cada um tem de adquirir as qualificações mais valorizadas”. Se isso não se dá, ainda podemos chamar as práticas avaliativas de meritocráticas? Ainda, a avaliação de mérito praticada na USP, ao longo de seus 90 anos, considerou esses aspectos?

A resposta a essas perguntas será não, se entendermos que as avaliações de mérito acadêmico na USP desconsideraram:

  1. Que as aprovações em concursos públicos tenham sido feitas por meio de indicações de bancas compostas de pessoas, e pessoas têm preferências, vieses, interesses.
  2. As evidências de que vieses influenciam as avaliações de mérito (mesmo que de modo inconsciente).
  3. A fragilidade no sistema de avaliação de mérito acadêmico que, apesar dos avanços tecnológicos que poderiam ser utilizados para benefício institucional, seguem sendo realizados de modo precário.
  4. O silêncio ou o medo de falar sobre erros ou irregularidades em avaliações por se temer “perseguições” nas avaliações posteriores. Ou temer a área trouble maker onde pessoas que apontam problemas são colocadas.
  5. Que alguns confundem cargos em concursos públicos com cargos de confiança.

Embora tenha havido mudanças ao longo dos anos na direção de assegurar transparência nas práticas institucionais e retificação das desigualdades oriundas de fatores ambientais que afetam o espaço acadêmico da USP, ainda assim há resistências e elas se revelam toda vez que privilégios são atacados ou quando se tem uma compreensão enganosa dos limites de uma avaliação de mérito acadêmico diante das situações apontadas acima, entre outras.

Para os próximos 90 anos, esperamos e trabalhamos para que a USP neutralize, de fato, os fatores ambientais que têm impedido uma avaliação justa do mérito acadêmico de todas e todos que têm contribuído para a excelência acadêmica da Universidade, que haja ainda mais transparência e eficiência nas avaliações, com prestação de contas à sociedade. E que as ações afirmativas, neste longo caminho, além de contribuir para a percepção dos locais onde os privilégios ainda residem, sigam operando como um instrumento democrático valioso para a consolidação de sociedades justas.

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