Embarque Imediato Ou Floresce Pitanga Na Trincheira

É preciso a imagem para recuperar a identidade. 

Tem-se que tornar-se visível. 

Porque o rosto de um é o reflexo do outro. 

O corpo de um é o reflexo do outro. 

E em cada um o reflexo de todos os corpos. 

A invisibilidade está na raiz da perda da identidade. 

Beatriz Nascimento em  Orí. 

Direção de Raquel Gerber.

 

Por Viviane A. Pistache para o Portal Geledés

Embarque Imediato (Foto Caio Lirio)

Sempre é tempo de aviar sobre o que pulsa mesmo após o apagar das luzes. Embarque Imediato, de autoria do dramaturgo Aldri Anunciação e encenado por Antônio Pitanga, seu filho Rocco Pitanga, com participação virtual de Camila Pitanga encerra temporada em São Paulo com muitas questões reverberando.  

Obra que completa a trilogia iniciada pelo espetáculo Namíbia, Não! montada em 2011 sob a direção de Lázaro Ramos (adaptada para o cinema, com estréia prevista para o primeiro semestre de 2020); e a obra O Campo de Batalha, montada em 2015 e que teve a direção de Márcio Meirelles que retorna na direção de  Embarque Imediato.  

Embarque Imediato é uma drama-debate¹ que encara o  tridente das tragédias históricas elencadas por Achile Mbembe: a escravidão, o colonialismo e o apartheid, a partir da seguinte questão: “Em qual identidade me confinaram? Ou melhor… em qual identidade me encarceraram?”

Embarque Imediato (Foto Caio Lirio)

Assim, coloca-se em cena um denso olhar sobre identidade e diáspora a partir do encontro forçado entre um Velho Cidadão (Antônio Pitanga) e um Jovem Cidadão (Rocco Pitanga) detidos na imigração de um aeroporto, supostamente por questões de passaporte.

Sob o mote de segurança internacional, a  interdição é refinada em seus dispositivos que captam as impressões digitais, leitura de  íris, retina, voz, e até a forma do rosto, para medir e arquivar não apenas a unicidade do indivíduo, bem como seu pertencimento racial. 

O encarceramento é explicado  pela instituição em sua forma etérea, a voz do aeroporto (presença virtual de Camila Pitanga), que regulamenta e anuncia a impossibilidade de transitar, ainda que soe simpática, solícita ou mesmo espirituosa. Enquanto aguardam a sentença, Cidadão Jovem e Cidadão Velho não têm outra alternativa a não ser o exercício especular de identidades.

A trama se passa na sala de detenção sintomaticamente chamada de “Sala Clean”,  concebida como um cenário de aridez plúmbea, higienista, revestido de arame farpado, configurando uma trincheira onde os detidos tentam sobreviver aos ataques à dignidade destituída, ao direito humano de migrar, transitar, ir e vir glocalmente.

Desde o ponto de partida, a obra se ancora num território que estabelece quem tem o privilégio de viajar a turismo, estudos e negócios e quem é confinado quando tenta deslocar sob o signo da migração diaspórica ou da busca incerta de refúgio. 

As rotas da Diáspora dizem de pontos de partida que implicam múltiplas violências, com  trajetórias que são construídas a partir da ressignificação e superação do começo da jornada. Turismo diz sobre privilégios e  a possibilidade de escolha desde o primeiro passo dado na viagem.

Daí que diáspora tem cor, gênero e nacionalidade. Turismo tem poder de consumo. Considerando as relações raciais e de gênero como campos de disputas, alguns sujeitos com determinados predicados, estão sempre em vantagem quando embarcam para onde quer que seja.

Não há maneiras simples de dizer que o direito de ir e vir no tempo e no espaço é violado para alguns povos (em diáspora) e privilégio para outros (em turismo) que podem transar e gozar com a experiência da alteridade. 

Embarque Imediato (Foto Caio Lirio)

Até que se prove o contrário, este é um fantasma que povos negros conhecem bem o hálito. Assim, a peça nos provoca a pensar que lugar ocupamos na platéia: se estamos ali na rota diaspórica ou simplesmente a turismo. 

A presença do Velho Cidadão oferece a oportunidade para que o Jovem Cidadão possa refletir sobre os sentidos de ser um corpo negro no mundo. A princípio o Jovem Cidadão romantiza a diáspora e não compreende por completo as forças que o levaram à detenção no não-lugar da cidadania. 

Assim, o Velho Cidadão encarnando uma ancestralidade carregada de historicidade crítica, desafia o Jovem Cidadão a encarar quais preços ele pagou ao apostar num paradigma da estética europeia que não foi suficiente para evitar que ele fosse jogado na vala comum de uma negritude desterrada. 

A peça nos convida a re-fabular nossa origem com a questão: de qual África viemos e em qual negritude habitamos agora, no tempo-espaço da peça? Num alinhamento de respostas possíveis, a peça nos capta em sua atmosfera onírica, que re-encena  pesadelos históricos, a partir do encontro de gerações.  

Na obra A Interpretação dos Sonhos, Freud nos informa que “os sonhos não são enviados pelos deuses e não são de natureza divina, mas que são ‘demoníacos’, visto que a natureza é ‘demoníaca’ e não divina. Os sonhos, em outras palavras, não decorrem de manifestações sobrenaturais, mas seguem as leis do espírito humano, embora este é verdade, tenha afinidades com o divino.” 

Assim, a peça nos possibilita um transe como experiência de convívio trans-temporal. O Velho Cidadão traz o lugar de entidade que vem do passado e fala do futuro, assumindo a função mediúnica de quem está atravessando a fronteira da consciência. 

Ao longo da trama, eventualmente nos questionamos se Velho Cidadão existe mesmo ou se é uma projeção trans-temporal do Jovem Cidadão. Assim,  Embarque Imediato é também uma forma dramática que lida com fantasmas. Onde tem história, tem fantasma, pois história é a produção de cadáver, necropolítica. 

É esta a toada da história de horror histórico proposta por Aldri Anunciação, no qual os sonhos, ou pesadelos, são destituídos de qualquer caráter premonitório e nos coloca diante de fantasmas sociais do passado que assombram nosso presente.

E assim,  o drama-debate, com sua  linguagem de terror onírico, nos convoca à vigília face ao inebriante convite para cochilarmos ao aconchego das falsas promessas progressistas do mundo pós-colonial.

Mas o Jovem Cidadão está longe de ser um desavisado ou impermeável ao conflito que o circunda. Ainda que sem muitas escolhas num confinamento, ele não foge de encarar os desafios de ser um negro no mundo dos brancos. Neste sentido é possível estabelecer uma confluência entre o Jovem Cidadão  e o próprio dramaturgo. 

Nesta metalinguagem, o palco encena  o racismo próprio da formação e da dramaturgia. E assim conhecemos a alma do nosso teatro de dentro e a partir de seus próprios arsenais, denunciando-a. 

Desse modo, Aldri Anunciação, como o Jovem Cidadão, torna-se uma testemunha que transita entre mundos de diferentes cores. Lembrando que James Baldwin aponta que as fronteiras entre testemunhar e atuar são finas, porém reais; e que parte da responsabilidade das testemunhas é movimentar com a maior liberdade possível para escrever a história. 

A escrita e vivência dramaturga em mãos negras pode se mostrar um armamento poderoso no enfrentamento às violências e alienações raciais, quando diferentes gerações de negritude habitam as trincheiras dos palcos.

Assim, o confinamento da Sala Clean deixa de ser a parada obrigatória numa viagem cujo  destino é o território das guerras sem ocaso, das disputas de fatos e memórias; apesar de supostas tréguas  nas passagens entre as estações históricas. Frente ao problema da experiência da viagem, o processo de significação do espaço, do outro e do eu, é possível via compreensão do corpo em situação histórica.

O drama-debate de Aldri Nascimento, integra uma cena do  teatro negro que funciona como testemunha da história, que revisita o passado e aponta para o futuro.  Nesse cenário, adjetivar o teatro como negro é criticar o chamado teatro moderno, interpelando sua raiz européia, criando uma nova gramática decolonial. 

E o Jovem Cidadão é a figura intelectual convocada  para fazer essa reversão crítica da experiência histórica para elaborar novos paradigmas de dramaturgia. Um  intelectual que aprende a ler e ser lido por uma audiência que transpasse as trincheiras, se aninhando no arena pública que também é cênica. 

Embarque Imediato (Foto Caio Lirio)

Toda figura intelectual tem orientação de uma figura mais velha e mais experiente. O Velho Cidadão assume essa postura de bússola não apenas teórica, mas de vida e ancestralidade, tensionando a importância que o dramaturgo alemão Bertolt Brecht tem na fundamentação de pensamento do Jovem Cidadão.

O Velho Cidadão levanta uma pergunta seminal: Qual é o número do  passaporte Brecht? Ou porque ele transita livremente e nós não? E ainda, porque o teatro brechtiano não assume suas heranças africanas, sobretudo das tradições do conto-dilema? 

Na condição de Agudá, o Velho Cidadão tenta provocar um processo de crioulização do pensamento do Jovem Cidadão, tendo em vista uma reafricanização que não foi possível para todos os filhos da Diáspora. Uma crioulização que,  seguindo trilhas abertas por Eduardo Glissant, traz para quem nasceu na colônia a possibilidade de entendimento e releitura da violência colonizatória. 

Ensejando a emergência do  disruptivo em sua potência imprevisível, a crioulização difere da mestiçagem que é reiteradamente uma compulsória mistura desigual, uma forma de controle social inerente ao projeto do colonizador.

Numa jornada de tomada de consciência o Jovem Cidadão compreende tanto o encarceramento que o impede de transitar pelo mundo, quanto o  confinamento de suas ideias e pensamentos. Foi preciso o encarceramento físico para o entendimento dos confinamento ideológicos. Uma transformação possível a partir do encontro com o Velho Cidadão que sabe usar as situações de intimidade coletiva para trazer as boas novas de libertação do pensamento. 

Trazendo o presente para o passado imediato, o Velho Cidadão torna possível a conciliação entre juventude e velhice, revertendo; pelo menos por um instante, a separação entre as gerações, que é uma das tragédias da diáspora.  Assim, ainda que encarcerados, esse encontro é profícuo a ponto de fazer florescer pitanga nas trincheiras da diáspora. Que venha a próxima temporada.

 

Viviane Pistache. Doutoranda em Psicologia e Cinema pela USP. Roteirista da O2 Filmes e crítica de cinema e teatro em parceria com o Portal Geledés. (Foto: Arquivo Pessoal)

 ¹ Conforme a tese do dramaturgo Aldri Anunciação intitulada “A Dramaturgia do Debate: Poética de Escrita Dramatúrgica do Drama-Debate”, drama-debate  diz mais sobre o embate de forças coletivas, do que de subjetividades encapsuladas

 

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** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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