Entenda como a indústria da beleza tentou embranquecer as mulheres negras

Removedor de pele preta e outros cosméticos vendidos nos séculos 19 e 20 são destrinchados em livro de Giovana Xavier

Com apenas um frasco do sabonete facial Hartona, seria possível tornar “a pessoa preta cinco ou seis tons mais clara” e “a mulata perfeitamente branca”. Era o que prometia uma propaganda publicitária da marca, em 1901, mesmo ano em que sua concorrente Rilas Gathright vendia o creme Whitener Imperial, sob a promessa de os “pretos virarem mulatos” e “mulatos se tornarem quase brancos”.

Uma série de cosméticos dos séculos 19 e 20 —à base de soda cáustica e concentrações excessivas de mercúrio, amônia, peróxido de hidrogênio, bórax e substâncias não reveladas— causou alergias, irritações, lesões, cicatrizes e até mesmo mortes em inúmeras mulheres negras.

O que unia esses cosméticos, de diferentes selos e finalidades, era a lógica sistêmica na qual estavam inseridos, marcada pela popularização de valores eugenistas e a normatização da brancura como padrão de progresso e de beleza universal. É o que afirma Giovana Xavier em seu novo livro, “História Social da Beleza Negra”.

Batons, perfumes, blushes, pós faciais, loções e pranchas alisadoras foram esmiuçados pela autora, que é especialista na história dos Estados Unidos e idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Com uma vasta pesquisa da conjuntura histórica e das relações de poder nas terras do Tio Sam, Xavier traz no livro uma análise sobre a reinvenção negra do pressuposto de que “a beleza começa com a pele”.

Traçando dados comparativos de migração, população e categorias raciais oficiais, a autora mostra que em meio a políticas segregacionistas, como as leis de Jim Crow, o mercado estético foi um dos principais difusores dos valores supremacistas brancos. Cosméticos como o sabonete da Hartona fizeram sucesso muito mais pela ideia que vendiam do que pelo produto específico.

Em meio à expansão do capitalismo industrial, empresas do setor propunham o ideal de uma nova beleza, atrelada a noções de pureza, saúde, glamour, inteligência e aptidão. E tudo isso associado à branquitude.

“História Social da Beleza Negra” mostra que produtos como clareadores de pele e alisadores capilares vendiam —em termos práticos— ideais de oportunidade de trabalho, ascensão social e respeito.

“Eu não quero que as pessoas leiam sobre o ‘black skin remover’ [removedor de pele preta] e fiquem horrorizadas achando que os negros simplesmente desejavam ser brancos. Não se trata disso”, diz a autora. “Esse tipo de produto está situado num contexto em que pessoas negras sofriam linchamento em praça publica só por encararem brancos na rua.”

É nesse cenário de pós-abolição e segregação que surge, então, o que Xavier chama de “capitalismo negro”, no qual afro-americanos criaram as próprias instituições, redes, estilos de vida, veículos de imprensa, propagandas publicitárias e produtos de beleza.

Nasce uma elite negra —regulada pela pigmentocracia, a discriminação racial a partir de tons de pele e fenótipos—, que passa a promover novos ideais sobre a existência afro-americana, muitas vezes repletas de paradoxos.

Se por um lado empresários negros —em sua grande maioria, de pele clara— reforçaram estereótipos femininos ao criar uma imagem da “nova mulher afro-americana”, por outro valorizaram a beleza negra.

Um cartaz da marca Kashmir, por exemplo, estampou em 1919 uma modelo negra vestida como Cleópatra, enaltecendo a ancestralidade africana. No entanto, a empresa vendia clareadores de pele negra e alisadores de cabelo.

“Todo conceito e projeto político de beleza negra foi construído com chancela e autorização da própria comunidade negra”, afirma Xavier.

A estética da art nouveau é encontrada em diversas propagandas da elite negra, o que enaltecia a cultura branca, mas, ao mesmo tempo, oferecia aos afro-americanos ideais historicamente negados, como glamour e poder.

Essa complexidade da expansão da indústria da beleza americana nos séculos 19 e 20 é, segundo Xavier, influente até mesmo na afirmação política atual dos movimentos negros. “O que temos de novo são os holofotes para a beleza negra, mas esses paradoxos continuam”, diz ela. “Além disso, se discutem muito questões como lugar de fala, o que é interessante, mas não podemos esquecer que as vozes negras sempre existiram. O que falta mesmo são ouvidos interessados.”

HISTÓRIA SOCIAL DA BELEZA NEGRA

  • Preço R$ 49,90 (160 págs.)
  • Autor Giovana Xavier
  • Editora Rosa dos Tempos

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