Entre o direito a infância e negação de direitos as meninas e meninos pretos: racismo estrutural desde a estirpe da existência humana

O Estatuto da Criança e do Adolescente, preconiza em seu terceiro artigo, que:

“A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. “

Apesar da pandemia causada pela COVID 19, apesar das mais de 31 mil vidas ceifadas nos últimos meses, apesar da necessidade de isolamento social, Miguel, menino negro, de olhos vívidos e cheio de sonhos, traços peculiares de quem vive a primeira infância, estava em companhia de sua mãe, uma mulher negra, assalariada que servia a uma família branca de Recife. 

Miguel de 5 anos estava lá em cima acompanhado por adultos, enquanto sua mãe passeava na rua com o cachorro da madame. Seu filho negro lá em cima, o cachorro da mulher branca, lá em baixo, passeando, gozando de alguns minutos de liberdade diante desse sufocante isolamento social. É provável que o ambiente era hostil, Miguel sentindo necessidade de segurança, afeto, proteção, foi sozinho em busca de sua mãe. Utilizou o elevador desacompanhado e chegou ao nono andar. É provável que tenha avistado sua mãe, figura que representava proteção. É possível que tenha tentado ir ao seu encontro e nesse momento, caiu.

Não foi com 20 tiros como João Pedro, não foi de COVID 19 como milhares de pessoas negras, não foi pelo joelho de um policial branco de uma corporação que tem requinte de crueldade, como George Floyd, mas pelo racismo estrutural que recai sobre a população negra desde a primeiríssima infância. 

Contrariando ao eu é posto no Estatuto da Criança e do Adolescente, ele não teve direito a Proteção Integral, não terá continuidade de seus sonhos, não poderá crescer para aprender a se proteger das abordagens policiais. Hoje pela manhã (04/06/2020) Tia Má (Youtuber negra), em um programa televisivo, falava que ensina ao seu menino preto retinto de nome Alabê: “Não corra na rua nunca, pois podem achar que você está fazendo algo errado”… 

Oliveira (2004) aponta, que bebês negros tem suas fraldas trocadas após a troca de todos os brancos, são menos tocados durante o cotidiano, choram por mais tempo, são alimentados por último. Miguel de 5 anos, pegou elevador desacompanhado, chegou ao nono andar, foi abandonado enquanto sua mãe cuidava de um cachorro.

Miguel não aprenderá a se proteger da polícia racista, porque a patroa racista já se ocupou de seu silenciamento. Não terá mais desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual como está preconizado no terceiro artigo do ECA. Ao perceber vidas jovens negras sendo ceifadas: Ágatha, João Pedro, Miguel, dentre outros, me pergunto: O Estatuto da Criança e Adolescente está a serviço de que? Quem são as meninas e meninos que estão na lista de proteção do Estado?

Miguel continuará vivo em cada menino e menina preta que vive a primeira infância, os que ainda virão, os que sonham em sair do lugar de invisibilidade iniciada nos primeiros anos de vida. Ele viverá nos corações de mulheres pretas que diariamente ensinam seus meninos os comportamentos necessários para estar vivo na sociedade brasileira. Sua família chorará essa morte por muito tempo, talvez para sempre.

Vidas negras importam! A infância negra existe!

Agatha, Miguel, João Pedro, vivem em nossos corações dilacerados pelas perdas diárias das nossas crianças!

 

Jussara Santos  (Doutora e Mestra em relações raciais na infância. É pesquisadora na área da infância e professora de Educação Infantil e Ensino Fundamental na Prefeitura Municipal de São Paulo). 

 


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