“E 1964, vocês sabem, foi o ano do golpe militar. Ali no Centro de Salvador, depois da aula, juntava o pessoal do Teixeira, do Central, do Ipiranga e dos outros colégios. Muitas vezes fomos para as ruas e participamos das manifestações estudantis, principalmente em 1968. Imagine a cabeça de uma jovem dividindo-se entre as convicções políticas e obrigações religiosas” – relembra Equede Sinha, 70 anos, em seu livro autobiográfico Equede: A mãe de todos, publicado pela editora Barabô e lançado no dia 8 de março de 2016, em Salvador, e em 6 de maio, em São Paulo.
Por Ana Flávia Magalhães Pinto, do Por falar em Liberdade
Naquele momento em que pessoas pelo país afora se reinventavam na luta pela defesa da democracia e da liberdade de expressão, a jovem Gersonice Azevedo também tomava decisões e assumia responsabilidades que teriam impacto não apenas em sua vida, mas ainda na de toda uma coletividade da qual era parte antes mesmo do seu nascimento. É que em 1970, um ano após ter se casado com Evaristo Bradão e se mudado para o Rio de Janeiro, ela foi confirmada equede no Terreiro da Casa Branca, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em Salvador, pelas mãos e as bênçãos de Mãe Nitinha e Mãe Tatá. Suspensa aos 7 anos, firmava-se, então, como mãe antes mesmo de gerar seus quatro filhos naturais: Gersoney, Gustavo, Edney e Júnior.
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No livro, escrito na primeira pessoa, ela nos conta como, nas últimas quase cinco décadas, empreendeu esforços individuais e coletivos para “dar continuidade ao que nos foi legado por nossa ancestralidade”, dedicando-se ao exercício diário de ser mãe não só de Oxóssi, mas “de todos os orixás, de Exu a Oxalá”, e daquelas/es protegidas/os pelos orixás. Vistas a partir do seu lugar de fala, as narrativas conservadoras sobre a história da cidade de Salvador e também do Brasil, que tornam invisíveis ou meramente anônimas pessoas como ela, ficam seriamente comprometidas. Sua forma de perceber e viver a vida, em contraponto a isso, assume relevância no destino de mulheres, homens e lugares. De tal sorte, a escrita da autobiografia torna-se uma afirmação da importância do seu lugar social, do seu posto de equede da Casa Branca, da sua condição de mãe de todos/as.
O governador Roberto Santos poderia não ter oficialmente liberado os cultos de matriz africana na Bahia em 1976. Assim como as derrotas poderiam sobrepujar as vitórias no que toca a degradação da natureza e a especulação imobiliária – como o risco causado pela construção de um posto de combustível da multinacional Esso nos anos 1970 e 1980, que atentou contra a manutenção da centenária herança material e imaterial associada ao terreno da Casa Branca, mas que foi demolido graças à mobilização do povo de axé. Mas o fato é que, como aprendera com outras “mulheres de partido alto”, Equede Sinha já sabia que as águas sempre criam passagem. E foi assim que se tornou sujeita ativa e testemunha das ações das/os praticantes do candomblé em defesa de seus direitos, contra o desrespeito religioso e o racismo.
Equedes Sinha de Oxóssi, Nem de Ogum (Angélica Ribeiro da Silva), Marineide Ferreira Conceição de Oxalá, Maridalva Ferreira Conceição de Oxóssi, e as irmãs Liliane e Nadja Chagas de Oxum. Foto: Dadá Jaques.
Isso porque, mesmo no tempo da distância geográfica, ela se manteve fiel aos compromissos firmados com o axé daquela casa de tradição matriarcal, fazendo-se presente nas variadas atividades anuais, seja “com barriga, sem barriga, com filho, sem filho”. Seu retorno definitivo em 1990, no entanto, foi justificado por seu lugar de filha. A saúde de sua mãe carnal, a Vovó Conceição (Maria da Conceição Oliveira), de Nanã, estava bastante debilitada, exigindo um zelo ainda maior. Enquanto se dedicava a esses cuidados, foi ainda surpreendida pela morte do marido. Pouco depois, em 1992, aos 82 anos de vida e 53 de candomblé, a bem lembrada Vovó Conceição também fez sua passagem para a ancestralidade. Mas, apesar dos reveses, “dentro de nossa religião, a maturidade chega muito cedo e tive forças para superar e honrar meus compromissos como mãe biológica e mãe espiritual que sem fui” − avalia.
Aliás, essa serenidade perante os desafios da vida Equede Sinha muito atribui aos ensinamentos de Vovó Conceição, sem, ao mesmo tempo, deixar de reconhecer os valiosos exemplos das outras tantas mães que lhe fizeram mãe. Em reverência aos significados desses aprendizados, ela trabalhou pela criação do Espaço Cultural VovóConceição, centro de corte e costura para roupas de orixás, inaugurado em 2006. Além de zelar pela manutenção de certas práticas culturais registradas por meio das vestimentas utilizadas nos rituais internos e nas festividades públicas, o espaço existe como forma de criar alternativas de geração de renda, sobretudo para as mulheres residentes no entorno da Casa Branca. Em sintonia com um conceito abrangente de saúde, o espaço também abriga oficinas de confecção de instrumentos, capoeira, alongamento, contação de histórias, etc., parte das atividades da programação anual da Feira da Saúde, que acontece desde 2003. Ao refletir sobre os porquês de fazer isso, Equede Sinha reafirma o princípio da ancestralidade: “Tenho certeza que ela [Vovó Conceição] está presente fazendo parte desta comunidade através dos ensinamentos que deixou”.
Equede Sinha e sua mãe, Vovó Conceição. Acervo Terreiro da Casa Branca.
Não sendo dirigido apenas ao povo de santo ou a especialistas, o livro traz uma série de informações que permitem a leitores/as leigos/as se aproximar de aspectos do cotidiano de um terreiro de candomblé que muito têm a dizer sobre as reelaborações das práticas culturais de origens africanas no Brasil, como a Festa do Jacaré, uma celebração à memória das antigas lideranças da comunidade, cuja origem remete à festa das Máscaras Geledés. E faz isso sem cair em proselitismo, é bom dizer.
A começar pelo próprio lugar de Equede, Mãe Sinha oferece explicações sobre esse lugar ocupado pelas mulheres que não entram em transe, não “viram no santo”, sendo responsáveis por atender os orixás e a casa. Trata-se, pois, de uma figura central na preservação do costume de acolher, escutar o que as pessoas, os/as filhos/as, têm e precisam dizer, e alimentar o sentimento de família estendida, tão caros à sobrevivência das populações negras trazidas para o lado de cá de Atlântico por força do tráfico internacional de seres humanos escravizados. Além dessa posição aparentemente simples, ela ainda nos lembra que as equedes também podem ocupar qualquer um dos cargos/postos da hierarquia de uma casa de candomblé. “Já tivemos equede-ialorixá, equede-iaquequerê, equede-iamorô” − comenta. Sobre elas também recai a responsabilidade de saber o que ofertar, o que comer, cantar, vestir, como dançar, agradecer e reverenciar os orixás e toda a ancestralidade. “Autoridade é vivência e conhecimento”, e, justamente por isso, faz questão de exaltar os ensinamentos de Tia Morena de Obaluaiê, que dizia que a “cozinha de axé é para conhecimento da comunidade”.
As histórias de Equede Sinha são, por certo, maneiras de se posicionar a respeito de assuntos delicados que envolvem as transformações e a continuidade do candomblé e suas tradições. Efetivamente, ao rememorar episódios que apontam para as conexões com casas em outros estados e os anseios por adequação às práticas religiosas e linguísticas da África contemporânea, por exemplo, ela faz uma defesa daquilo que foi sendo construído e mantido pelas gerações de Mães Ancestrais que enfrentaram as possibilidades e limitações colocadas pelo processo histórico brasileiro. Sobre isso, ela não se intimida ao dizer.
“As traduções que estão tentando fazer podem se tornar uma grande armadilha. Corremos o sério risco de perder todo esse legado, toda essa história de diversos povos que se uniram, se misturaram aqui no Brasil, e que são a nossa origem, a identidade da nossa religião. O que eles falavam é o que nós falamos hoje. Perdemos muita coisa, mas a essência é a mesma.Temos um ioruba religioso, construído com partes de inúmeros dialetos sagrados que vieram de uma África que já não existe mais. Isso se misturou com a cultura local dominante da época e nos fez o que somos. Então o jeito que minha tia Tieta canta, para mim, é o certo. Faço questão de cantar do jeito dela porque é a forma de valorizar a maneira que ela aprendeu com as mais velhas”.
No fim das contas, para ela, o que importa mesmo é o princípio de que os orixás “são nossos antepassados divinizados que se integraram às energias da natureza”. E, portanto, como diz a cantiga (orim) que entoou durante o lançamento do livro em São Paulo: “Nada vai nos impedir de praticar a religião de nossa casa”. O livro está, pois, repleto dessas conversas de mãe, joias preciosas nesse tempo de novas batalhas contra preconceitos e discriminações.
Lançamento do livro em São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade, 6 de maio de 2015.
Autora: Gersonice Equede Sinha Azevedo BrandãoLivro: Equede – A Mãe de Todos
Organização: Alexandre Lyrio e Dadá Jaques
Editora: Barabô (Salvador, 2016)
Valor: R$ 150,00
Outras sugestões de leitura:
Lisa Earl Castilho e Luis Nicolau Pares. Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma historiografiado candomblé ketu. Afro-Ásia, n. 36, 2007, p. 111-151.
Lisa Earl Castilho e Luis Nicolau Pares. José Pedro Autran e o retorno de Xangô. Religião e Sociedade, v. 35, n. 1, 2015, p. 13-43.