Era uma vez a presunção de inocência

Por 7 votos a 4 o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última quarta-feira (17 de fevereiro de 2016) que é possível o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau, ou seja, antes da apreciação de eventuais recursos nas cortes superiores. Em outras palavras, uma pessoa poderá cumprir a pena antes do fim do processo que pode, tempos depois, ser anulado ou julgado ilegal pelo STF. É algo que afronta a Constituição Federal e que coloca em risco a ideia de um sistema de garantias no qual todo o cidadão teria o direito de não ser considerado culpado até o trânsito da sentença penal condenatória.

Enviado por Felipe da Silva Freitas via Guest Post para o Portal Geledés

A virada ocorrida esta semana no plenário do Supremo representa um absurdo que choca a qualquer analista minimamente sério, atento e bem informado. É um giro político que não só viola o princípio da presunção de inocência como também ataca o direito de defesa dos cidadãos, contribui para ampliar ainda mais os insuportáveis índices de encarceramento do país, bem como ataca direitos fundamentais o que põe em xeque aspectos básicos do próprio discurso democrático instituído na Constituição.

A possibilidade de defender-se, de disputar novas interpretações quanto ao sentido da Lei e de contraditar entendimentos dos juízes de primeiro grau até a máxima Corte Constitucional é condição necessária para a caracterização de um sistema de justiça como democrático, sobretudo na área penal. Este é um avanço em relação a modelos anteriores e uma valiosa riqueza que – mesmo não usufruída por todos – deve ser preservada e ampliada, não atacada como quis o STF. Ao permitir que tenha início a execução da pena antes da apreciação final – trânsito em julgado – do processo por parte da mais alta Corte do país abre-se uma imensa possibilidade para que equívocos judiciais ponha pessoas inocentes na cadeia.

Num país com uma das maiores populações carcerárias do mundo e com um número de 41 % de presos provisórios, ou seja, presos que sequer tiveram os seus processos concluídos na primeira instancia, é de se imaginar os efeitos desta decisão em termos de quantitativo de pessoas encarceradas e dos efeitos deste hiper-encarceramento nas condições dos estabelecimentos prisionais.

Não resta dúvidas de que, no conjunto, são “jovens-homens-negros” o grupo mais afetado por esta absurda decisão. Ainda que se saiba que apenas os ricos conseguem pagar bons advogados para acionarem o STF e que a maioria dos presos (jovens-homens-negros) não consegue sequer apresentar recursos nos Tribunais de segundo grau é importante destacar os efeitos desta nova interpretação na cultura jurídica nacional, já excessivamente punitivista e encarceradora.

Mesmo que se argumente que seriam os ricos, os corruptos, os endinheirados aqueles que seriam afetados pelo novo entendimento do STF sabemos que a lógica do direito penal não é essa. Quem acompanha o funcionamento do sistema penal sabe que, na prática, as mudanças legislativas e jurisprudenciais, mesmo quando retoricamente dirigidas aos ricos, serve apenas como mais um odioso argumento para punir mais os negros e os pobres em geral.

O direito penal tem se tornado, cada vez mais, um campo de violências e abusos dos mais variados. A aplicação de penas de forma desproporcional, a fixação de regime de maneira mais gravosa do que o necessário e o silêncio quanto a inúmeras nulidades praticadas em primeira instância ganham uma espécie de autorização do Supremo Tribunal Federal, repita-se pessoas podem ser presas antes de poderem esgotar todos os recursos possíveis para sua defesa.

Se não se produzir uma crítica muito consistente a esta tragédia em breve diremos sem ressalvas: “Era uma vez a Constituição Federal e suas (retóricas) garantias e direitos fundamentais…”

Felipe da Silva Freitas é mestre em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia (GPCRIM UEFS)

 

[symple_button url=”https://www.academia.edu/22235725/Era_uma_vez_a_presun%C3%A7%C3%A3o_de_inoc%C3%AAncia” color=”orange” button_target=”_blank”]Era uma vez a presunção de inocência – PDF[/symple_button]

 

 

 

+ sobre o tema

Marcos Coimbra: Serra nacionalizando São Paulo

Nacionalizando São Paulo por Marcos Coimbra Chega a ser comovente...

Perseguição a servidores e o desmonte das instituições

Opção do atual governo por encerrar importantes políticas públicas...

Samba, memória e poesia contra as injustiças do Estado

Cordão leva protesto contra os crimes do Estado durante...

para lembrar

Graças à internet, ‘facilitamos muito para quem odeia’, diz Leandro Karnal

Historiador e um dos palestrantes mais requisitados do país...

Movimentos iniciam coleta de assinaturas pela Reforma Política

Plataforma de diversas entidades sociais precisa recolher 1,5 milhão...

Donos do dinheiro se aproximam de Marina

Candidata do PV é a que mais arrecadou doações...

Versos da madrugada

Pedro Paulo está remoendo uma dor que o azucrina:...

Em 20 anos, 1 milhão de pessoas intencionalmente mortas no Brasil

O assassinato de Mãe Bernadete, com 12 tiros no rosto, não pode ser considerado um caso isolado. O colapso da segurança pública em estados...

Ambiente escolar é onde mais se sofre racismo, diz pesquisa

Uma pesquisa conduzida pelo Instituto de Referência Negra Peregum (Ipec) e Projeto SETA mostra que 38% dos entrevistados disseram que escolas, faculdades e universidades...

CPMI dos Atos Golpistas: o eixo religioso

As investigações dos atentados contra a democracia brasileira envolvem, além dos criminosos que atacaram as sedes dos três Poderes, políticos, militares, empresários. Um novo...
-+=