Ideologia e práticas fascistas causam-me repugnância. Misto de medo e ódio. Quem combateu os tempos macabros de fascismo no Brasil (ditadura militar de 1964) carrega, além da repugnância, o sentimento do dever cumprido e a obrigação eterna de reconhecer e denunciar as diferentes faces do fascismo.
Por Fátima Oliveira Do O Tempo
Desde pós-eleições presidenciais de 2014, tive a percepção de que o fascismo – que ensaiava sair da toca antes das eleições, sobretudo durante a campanha – reaparecia com vigor espantoso quando quem perdeu as eleições não aceitava a derrota, e sob o argumento do país dividido, devido a uma vitória inegável, porém numericamente “apertada”, movia mundos e fundos, querendo sair vencedor de um pleito que perdera no voto a voto!
Tal atitude não republicana encontrou eco em setores que sufragaram o nome do derrotado, mas muito mais na escória da política que sempre se beneficiou do fato de que somos um país dividido, não apenas por classe, mas também por recorte racial-étnico. País dividido é o “normal” do Brasil, pois desde sempre somos um país “apartado”.
Logo, país dividido é argumento que não se sustenta para colocar em xeque uma eleição quando não se é vitorioso. Na medida em que as práticas fascistas, seja na vida real ou no mundo virtual – nas redes sociais –, apareceram mais amiúde, adquiriram ar de naturalidade, era insuportável não me insurgir contra elas. Eu me via aos vinte e poucos anos devolvendo a beca do coral da UFMA para não cantar para Geisel (Ernesto Geisel, 1907-1996), ditador do Brasil de 1974 a 1979.
Pouca gente imagina o que é, em tempos de fascismo, para uma estudante de medicina, no começo da noite, sair do parque Urbano Santos, passar pela praça do Panteon, descer a rua dos Remédios até ao palácio Cristo Rei, onde cantaríamos para o ditador, para devolver a beca ao maestro do coral, Giovanni Pelella, na véspera da solenidade, já com o largo dos Amores (praça Gonçalves Dias) cercado por policiais, depois de o meu nome ter sido carimbado como inofensivo e apto para cantar para o ditador.
Quem integrava o coral da UFMA, uma semana antes do evento, passou por um pente-fino! O maestro apenas disse: “Nossos nomes passaram”. E eu ria intimamente por enganar a ditadura! Fui da Juventude Operária Católica (JOC), mas já respondia politicamente ao PCdoB.
Fui uma das primeiras pessoas inscritas no coral da UFMA quando ele foi criado, em 1973. “Amo música e gosto de cantar. Não tenho uma voz e tanto, mas sou afinadíssima em meu naipe de contralto. Sou muito musical e do tempo em que canto orfeônico era uma disciplina escolar. Aprendi a solfejar e a ler partitura… Ser desasnada em música é um privilégio. Participei de corais do primário à universidade” (“Sociologia da música caipira & da música sertaneja”, O TEMPO, 26.5.2009).
E por que devolvi a beca ao maestro? Eu não queria cantar para Geisel, mas não podia dizer o motivo! Após passar a barreira do Exército na entrada do palácio Cristo Rei, no auditório entreguei minha beca ao maestro (não recordo por que ele estava lá naquele horário), apenas disse que não poderia participar porque estava com febre e diarreia. Alguém disse: “É a estudante de medicina, está com diarreia”. Gelei!
Outro alguém pegou a lista de nomes e riscou o meu. Devo ter sido convincente o bastante e com certeza estava com um aspecto de doente porque nada me foi perguntado. Saí de lá zonza e, na altura de onde era o Colégio São Luís, comecei a chorar convulsivamente. Entrando em casa ainda chorava. Eu poderia não ter voltado – eram tempos de fascismo.