Os critérios com que brasileiros e americanos se identificam racialmente estão se aproximando, diz Reginald Daniel, professor de sociologia da Universidade da Califórnia (Santa Barbara).
Por João Fellet, do BBC
Ele afirma que, aos poucos, os Estados Unidos estão deixando para trás um modelo de classificação rígido e binário, que enquadrava a maioria da população nas categorias branca ou negra. Com a imigração latina e o crescimento de casamentos inter-raciais, cada vez mais americanos se veem como multirraciais.
Já o Brasil, onde historicamente vigora um modelo racial mais flexível, percorre o caminho inverso: cresce no país o número de pessoas que se identificam como pretas ou negras e repelem termos que designam grupos intermediários, como pardo ou mestiço.
A tese está no livro Race and Multiraciality in Brazil and the United States: Converging Paths? (“Raça e multirracialidade no Brasil e nos EUA: caminhos convergentes?”, em tradução livre), escrito por Daniel após vários anos de pesquisa nos dois países.
Em entrevista à BBC Brasil, o professor afirma que o estigma ligado à escravidão ainda impede que muitos brasileiros assumam sua ancestralidade africana.
Daniel, americano que se define como multirracial, comentou o silêncio do jogador Neymar diante das ofensas raciais que sofreu em partida no início do mês, na Espanha.
“Se não fosse famoso, Neymar correria os mesmos riscos de um preto ou pardo que topasse com a polícia à noite na zona norte do Rio.”
Leia os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil – Muitos no Brasil – particularmente no movimento negro – têm cobrado Neymar e outras figuras públicas a se identificar como negras e a se posicionar publicamente contra o racismo. Como avalia a postura?
Reginald Daniel – O movimento negro está tentando transmitir uma mensagem de unidade na luta antirracista e quer que mais pessoas falem sobre isso. A estratégia faz todo o sentido, mas acho problemático o discurso de que, para entrar na luta pela libertação negra, uma pessoa não possa reconhecer uma identidade que a conecte também à brancura.
As categorias raciais no Brasil historicamente se baseiam em aparências físicas. Se uma pessoa se olha no espelho e se vê numa categoria intermediária, fazer com que ela passe a se ver como negra não é tão simples. Muitos podem reconhecer uma ancestralidade africana, mas se identificar como pardos, mestiços, morenos ou outros termos.
Para mim, o mais importante é conscientizar essas pessoas de que elas são parte da luta negra e de que essa identidade multirracial não pode ser usada para fugir da luta.
Acho que até mesmo brancos podem ter um papel nesse esforço. Já há muitos americanos de origem europeia engajados em vários tipos de iniciativas antirracismo, nem que seja simplesmente condenando-o ou apoiando ações que busquem garantir maior equidade em universidades, no governo e em empresas, por exemplo.
BBC Brasil – Neymar foi criticado em 2014 por dizer que, por não ser negro, não sofria racismo no Brasil.
Daniel – Acho delicado que ele diga não sofrer racismo por não ser negro, porque outros com as características físicas dele poderiam sofrê-lo. Se não fosse famoso, Neymar correria os mesmos riscos de um preto ou pardo que topasse com a polícia à noite na zona norte do Rio.
Talvez ele esteja em negação. Talvez até perceba a discriminação, mas ache que não seja racialmente motivada. Mas seria muito válido se ele falasse e se posicionasse, mesmo que individualmente não se sinta afetado.
BBC Brasil – O sr. acha que brasileiros têm dificuldade em se ver como negros, em reconhecer sua ancestralidade africana?
Daniel – Acho que quase todos no Brasil estão conscientes de sua ancestralidade africana, ainda que neguem ou não falem sobre isso, exceto por alguns em áreas que atraíram muitos imigrantes europeus, como São Paulo e Santa Catarina.
Testes genéticos mostram que a maioria dos brasileiros tem ancestrais do oeste africano. Por outro lado, embora reconheçam essa conexão, muitos não a assumem por causa do estigma associado à escravidão e à negritude no Brasil.
BBC Brasil – Houve uma discussão recente no Brasil em torno da identidade racial do namorado de uma videologger famosa (Jout Jout). Alguns que viram suas fotos disseram que ele era negro, mas ele gravou um vídeo dizendo que sempre havia se considerado pardo. Historicamente o que diferencia as identidades preta e parda no Brasil?
Daniel – Dados mostram que pretos e pardos estão bem próximos em índices como expectativa de vida e escolarização. Historicamente, pardos tiveram um pouco mais de oportunidades durante a escravidão, mais acesso à educação e mobilidade social. Por terem uma ligeira vantagem na forma como são vistos pela sociedade, talvez alguns não tenham a consciência de sofrer discriminação e não a experimentem como os pretos.
E havia historicamente um processo de branqueamento, uma percepção de que haveria uma vantagem, ainda que mínima, se você não associasse a negritude à sua identidade. O estigma ligado aos negros é muito poderoso até hoje. O Brasil é dominado por quem os brasileiros consideram brancos. Então, há um fator estético na sociedade, independentemente do que aconteça em termos políticos, de ações afirmativas em universidades etc.
Remover o estigma da negritude tem sido um esforço central na luta contra o racismo. Para que as pessoas que estão racialmente no meio do caminho não pendam na direção da branquitude, mas sim se engajem na negritude e na crítica do racismo. Para que percebam que estão todas no mesmo barco.
BBC Brasil – Cresce no Brasil a adoção de bandeiras comuns ao movimento negro americano, como a “apropriação cultural” (crítica ao uso de elementos de uma cultura por membros de outra cultura). Como traçar uma linha entre as culturas branca e negra no Brasil?
Daniel – É difícil, porque a cultura afrobrasileira foi vista por muito tempo como parte da cultura nacional. O samba, o candomblé, a capoeira, tudo isso foi compartilhado por todos os brasileiros.
Quem tem o direito de assumir itens que refletem conexões com a África? Só os que têm uma ancestralidade africana visível? Nos EUA, é mais fácil fazer essa distinção, porque brancos e negros são mais delineados culturalmente.
BBC Brasil – O senhor diz que os modelos raciais do Brasil e dos EUA estão convergindo. Até que ponto o Brasil se aproximará do modelo americano?
Daniel – Hoje, o Brasil já se parece muito mais com os EUA do que no passado, mas acho difícil que os brasileiros adotem um modelo binário similar ao americano.
Quando saiu o Censo de 2010, muitos disseram que pela primeira vez o Brasil tinha uma maioria negra. Mas se você analisar os dados verá que os brancos ainda são o grupo mais numeroso, apesar de terem tido uma pequena redução. A maioria dos que são tidos por negros se veem como pardos.
O Brasil tem uma maioria não branca, certamente. Mas essa maioria não branca é majoritariamente parda. Acho que as pessoas estão ignorando isso, porque querem mudar para um modelo binário negro-branco. Mas essa não é a realidade dos brasileiros.
BBC Brasil – E por que acha que as identidades raciais nos EUA estão se tornando mais parecidas com as do Brasil?
Daniel – Quando foram removidas as leis Jim Crow (regime segregacionista que vigorou até quase o final da década de 1960, principalmente em Estados do sul dos EUA), a sociedade se tornou mais aberta. Ainda estamos informalmente muito segregados, particularmente em bairros, escolas e igrejas, mas os casamentos inter-raciais já são 7% do total.
No fim dos anos 1970, as pessoas nascidas dessas relações começaram a questionar a manutenção das regras de identidade do regime segregacionista. Antes valia a “lei da uma gota”, pela qual quem tinha uma gota de sangue negro era considerado negro. No Censo de 2000, as pessoas puderam pela primeira vez selecionar mais de uma categoria na pergunta sobre raça. Em 2010, 9 milhões de pessoas o fizeram. É uma mudança imensa.
Com o tempo, os EUA tendem a se mover mais e mais na direção do Brasil, adotando um modelo com identidades mais flexíveis e fluidas. Já temos grupos, espaços, sites, conferências, festivais destinados a pessoas mestiças ou voltados ao tema da multirracialidade.
Em Sacramento e em vários condados do norte da Califórnia, há um grande número de famílias inter-raciais e pessoas que se identificam como multirraciais. Soube que lá algumas dessas pessoas estão interpelando outras que elas consideram multirraciais mas não se identificam assim, cobrando-as a assumir a identidade.
BBC Brasil – A imigração de latinos também tem alguma influência nessa mudança de percepções?
Daniel – Esse também é um componente importante, embora mais sutil. Os imigrantes latinos vêm para cá com formas muito diferentes de ver raças e têm de se adaptar aos padrões locais. Eles podem ser vistos como latinos ou hispânicos, mas nas suas comunidades frequentemente usam muitas outras formas de identificação e estão numa posição racial intermediária no modelo binário preto-branco dos EUA.
BBC Brasil – A eleição de Barack Obama teve algum impacto nas relações raciais nos EUA?
Daniel – Para algumas pessoas, ter um homem com ascendência africana no topo levaria a uma cicatrização racial. E de fato a eleição pode ter gerado um momento de grande unidade, temporariamente. Mas o governo dele gerou reações públicas de hostilidade racial que ninguém poderia imaginar. As pessoas não estavam prontas para um presidente negro. Houve um ataque à negritude só por causa de sua presidência.
Até a administração Reagan (1981-1989), ou mesmo a de Bush pai (1989-1993), vivíamos sob uma ideologia em que raça não era importante. Entendia-se que o caráter e a integridade de uma pessoa eram fatores mais relevantes. Mas o mundo não mudou só porque as pessoas diziam isso. Nossa sociedade continua muito racializada, algo que emana da desigualdade racial. A eleição de Obama tirou o véu dos nossos olhos.
Abordagens policiais frequentemente resultam em mortes de negros inocentes. Não sei que nome as pessoas vão dar a isso, mas é impressionante que não esteja acontecendo com muitos brancos.
A maioria das pessoas ainda prefere ignorar o tema racial, achando que, se não falarmos sobre ele, o problema desaparecerá. Não vai, ele só vai piorar, a menos que nós, como nação, reconheçamos sua gravidade e tomemos medidas agressivas para erradicá-lo.
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