Exposições tentam romper barreiras à presença negra nas artes visuais

‘Histórias Afro-Atlânticas’, em cartaz em São Paulo, é o ponto alto desse processo gradativo

por Daniel Rangel no Folha de São Paulo

“Histórias Afro-Atlânticas”, em cartaz simultaneamente no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, é o ponto alto, até o momento, de um gradativo processo de inserção dos negros no circuito das artes visuais brasileira nos últimos anos.

A monumental mostra é composta por cerca de 400 obras e documentos acerca da presença da cultura africana na formação dos povos banhados pelo oceano Atlântico, sobretudo o Brasil.

O racismo continua sendo uma praga de nossa anacrônica sociedade multicultural, apesar de o legado africano ser algo inerente a essa formação identitária. Estamos cercados de injustiças e violências diárias contra os afrodescendentes e temos a obrigação ética, moral e histórica de combater esse crime em todos os setores sociais, incluindo o artístico.

Acredito no poder transformador das artes e que a cultura seja uma real alternativa de inserção e mobilidade social, como ocorre principalmente no meio musical.

Entretanto, as artes visuais seguem sendo, provavelmente, a mais branca e elitista das linguagens artísticas, e o espaço para os negros, seja como artista, seja como temática, encontra-se ainda muito restrito.

O grande investimento, a ampla pesquisa e o fato de a maioria dos 200 artistas de “Histórias Afro-Atlânticas” serem negros ainda é uma exceção no sistema vigente. Contudo, a exposição, que não é a única em cartaz com esta abordagem, é um importante acontecimento no intuito de romper com as barreiras ainda existentes com relação à presença negra no fechado sistema de artes visuais, e não somente.

Fotografia da série “Carnaval” (1972), de Carlos Vergara, exposta em “Histórias Afro-Atlânticas”, no Masp – Jorge Bastos/Divulgação

O curador e crítico de arte senegalês Simon Njami ressaltou que “o choque de ser visto não é mais apenas uma experiência ontológica, faz parte de uma abordagem política que levou inexoravelmente às independências [africanas]. Para a pessoa que vê, isso desencadeia um processo de conscientização”.

Essa virtude também foi ressaltada pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty: “Meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha para todas as coisas, também pode olhar a si mesmo, e então reconhecer no que está vendo, o ‘outro lado’ de seu poder de ver”.

A capital paulista é o epicentro do sistema artístico nacional, e, além de “Histórias Afro-Atlânticas”, outras exposições que estão ou estiveram em cartaz na cidade recentemente evidenciaram esta mesma temática.

O Instituto Moreira Salles apresentou uma bela mostra do fotógrafo malinês Seydou Keïta, um dos primeiros artistas africanos a conseguir uma inserção no circuito europeu, ainda nos anos 1980. O Videobrasil realizou a coletiva contemporânea “Agora Somos Todxs Negrxs”, enquanto o Sesc 24 de Maio exibiu a mostra “Jamaica, Jamaica!”.

“Ex Africa”, que conta com obras de importantes artistas africanos da atualidade, passou por São Paulo e Rio de Janeiro e atualmente está em cartaz no CCBB Brasília.

Outra coletiva, só que neste caso de artistas brasileiros, está montada no Sesc São Carlos: “PretAtitute – Insurgências, Emergências e Afirmações na Arte Afro-Brasileira Contemporânea”, além de “Isso É Coisa de Preto: 130 anos de Abolição da Escravidão”, no Museu Afro Brasil de São Paulo, único no país que mantém programação frequente sobre o tema.

Em conjunto com essas exposições em instituições de grande visibilidade, soma-se a inserção no circuito internacional de bienais e também no comercial, de galerias e feiras de arte.

Na SP Foto, feira de fotografia realizada em agosto, a presença de artistas negros foi destacada. Na última edição da Bienal de Veneza, o baiano Ayrson Heráclito foi um dos quatro artistas brasileiros selecionados pelo curador da mostra principal. Na edição anterior da Bienal italiana, já havia participado outro expoente negro da arte brasileira, o mineiro Paulo Nazareth.

Heráclito, que é doutor pela PUC-SP e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, foi ainda um dos curadores de “Histórias Afro-Atlânticas”.

Além dele e de Nazareth, outros artistas negros estão finalmente sendo reconhecidos e valorizados no meio artístico brasileiro atual, a exemplo de Ana Lira, Anderson AC, Arjan, Bruno Baptistelli, Caetano Dias, Dalton Paula, Daniel Lima, Eustáquio Neves, Jaime Lauriano, Laercio Redondo, Musa Michelle Mattiuzzi, Rosana Paulino, Sonia Gomes, entre outros.

Sem dúvidas, a arte não tem o poder, sozinha, de terminar com o preconceito racial vigente, e tampouco os fatos aqui narrados eximem o meio artístico de ser, em sua maioria, racista.

Contudo, o poder de ver e ser visto proporcionado pelas artes pode contribuir com uma mudança nesse inaceitável comportamento humano, principalmente do brasileiro, ao despertar uma conscientização com relação à riqueza do incontestável legado africano na própria identidade cultural. Precisamos urgentemente reconhecer que o Brasil é também africano. Saravá!

Daniel Rangel é curador e mestrando em poéticas visuais pela ECA/USP.

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