“Feminismo negro não exclui, amplia”: Djamila Ribeiro debate ativismos a convite da França

Em entrevista exclusiva à RFI, em Paris, Djamila Ribeiro recupera momentos dessa trajetória que a transformaram em um dos principais nomes do feminismo e do ativismo brasileiro e comenta as descobertas feitas na França, país que ela ainda não conhecia.

Por Márcia Bechara no RFI

A filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro participou do programa da chancelaria francesa Personalidades do Amanhã.
A filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro participou do programa da chancelaria francesa Personalidades do Amanhã. RFI:Márcia Bechara

 

A última vez que a escritora, pesquisadora e ativista Djamila Ribeiro conversou com a RFI Brasil foi no Dia Internacional dos Direitos da Mulher do ano passado, 8 de março de 2018. Menos de uma semana depois, a vereadora carioca Marielle Franco seria assassinada a tiros junto com seu motorista no Rio de Janeiro. O baque marcou a trajetória de Djamila Ribeiro, que foi recebida esta semana em Paris pela diplomacia francesa, um convite que partiu do governo de Emmanuel Macron para que ela participasse do programa “Personalidades do Amanhã”, ao lado de outras lideranças sul-americanas.

“Para mim foi um choque. Eu não acreditei. Eu tinha relações com Marielle Franco, participamos de vários eventos juntas”, conta Djamila Ribeiro sobre a execução da ex-vereadora. “Nós, as mulheres negras ativistas do Brasil, ficamos com uma sensação de muito medo do que poderia vir a acontecer”, conta. A filósofa é autora de livros que pontuam o movimento negro e o movimento feminista negro no Brasil, como Quem tem medo do feminismo negro? e O que é lugar de fala?, que, traduzidos para o francês, serão lançados em maio pela editora Anacaona, na terra de Voltaire e Diderot. Além de autora, Djamila coordena a edição da coleção “Feminismos Plurais”, da editora Letramento no Brasil, com títulos como O racismo recreativo, onde o autor Adilson Moreira, doutor em Direito pela Universidade de Harvard, discute os nomes pejorativos dado a negros no Brasil, sob o disfarce da “brincadeira”.

Articulada, mestre em filosofia política com uma tese que compara Simone de Beauvoir e Judith Butler ao feminismo negro, Djamila Ribeiro é, do alto de seu mais de 1m80, uma espécie de musa feminista das redes sociais brasileiras. Mas se a morte de Marielle calou fundo, ela consegue ver um outro lado da mesma moeda. “Houve um levante das mulheres negras, entendendo que ocupar o espaço político era interessante. Várias pessoas ligadas ao gabinete dela foram eleitas como deputadas estaduais, várias outras se elegeram deputadas federais. Em números absolutos, ainda é muito pouco comparado com o tamanho da população negra, mas não dá para negar que é a maior participação que tivemos até hoje”, diz.

Djamila conta que deveria ter participado neste 14 de março, quando foi celebrado o aniversário de 1 ano da morte de Marielle, de um evento na prestigiosa Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, ao lado de Angela Davis e de Mônica Benício, viúva da vereadora. Mas a agenda francesa não permitiu o deslocamento. “O que nos machuca é a falta de respostas relativa ao assassinato de uma parlamentar numa rua do Rio de Janeiro”, diz. “O Brasil é o país que mais assassina ativistas de direitos humanos no mundo. Resistimos, porque não temos outra opção, mas não dá para negar que estamos vivendo um período muito preocupante em relação à nossa segurança”, afirma.

“Nunca recebi ameaças diretas, mas vários ataques na Internet, diários, contra minha família. São ataques muito pesados, racistas e machistas. Essa semana, postei uma foto minha no túmulo de Simone de Beauvoir [no cemitério de Montparnasse, em Paris], e sofri uma avalanche de ataques”, afirma. O problema, conta Djamila, “é que a direita criou toda esta mistificação em torno da Simone de Beauvoir, sobretudo quando ela foi tema do Enem. E eu estudei Simone de Beauvoir, que hoje é chamada de nazista e pedófila no Brasil. As pessoas não estudam, a gente vive num Brasil hoje em que as pessoas não leem sobre nada, mas elas têm opinião sobre tudo”, diz. “Fiquei dias sendo xingada na Internet de maneira absurda porque postei uma foto com a Simone de Beauvoir”, conta.

Djamila relembra um episódio traumático de 2018 no estado do Acre: “fui fazer um evento a convite do Ministério Público, ainda no segundo turno das eleições, e o Acre é um estado em que o Bolsonaro teve 80% dos votos no primeiro turno. Tive que andar com escolta armada o tempo inteiro, segurança armada 24h, eles me impuseram, sentiram que havia algum perigo. Aquilo me chocou e me machucou, nunca tive que andar com escolta na vida”, afirma a filósofa.

Experiência na França

Sobre o programa “Personalidades do Amanhã”, promovido pelo Quai d’Orsay, a diplomacia francesa, Djamila afirma que gostou muito da possibilidade da troca de experiências, “também com os companheiros latino-americanos, da República Dominicana, da Argentina, da Guatemala, de El Salvador”. Um dos projetos que chamou sua atenção na França foi a Casa das Mulheres, a Maison des Femmes, em Saint-Denis [na periferia de Paris]. “É um lugar especializado na saúde da mulher, eles atendem mulheres que vão fazer aborto, com atendimento psicológico, sobretudo naquela área, com muitas imigrantes”, conta.

Djamila destaca também as trocas ocorridas dentro das reuniões no Ministério das Relações Exteriores da França. “Conhecemos a neurocientista Catherine Vidal, olha que interessante, uma neurocientista que refuta o determinismo biológico. Foi riquíssimo. Ela fala sobre como o cérebro vai se moldando concretamente a partir da cultura. Ela não naturaliza o comportamento de mulheres e homens, mesmo sendo uma neurocientista. Geralmente o diálogo que a gente tem com neurocientistas é difícil nesse sentido”, diz. “Eu que estudei Simone de Beauvoir, que confronta, já no primeiro capítulo de O Segundo Sexo, os dados da biologia, para mim foi interessante fazer a ponte com a neurocientista”.

“Conhecemos também uma organização de homens contra o machismo aqui na França, tivemos a oportunidade de conhecer quais são as cooperações internacionais que a França tem com alguns países da América Latina, visitamos centros de pesquisa. Em Estrasburgo [leste da França, sede do Parlamento europeu], fomos aos Tribunal Europeu de Direitos Humanos. É impressionante o quanto a gente desconhece no Brasil os mecanismos de Defesa para ativistas de Direitos Humanos, essas informações não chegam pra gente. Já me comprometi a escrever depois sobre essas informações para compartilhar com movimentos brasileiros”, conta a ativista. “Achei interessante autoridades francesas me perguntando como estava a vida no Brasil e se colocando à disposição caso a gente se sinta ameaçado. Eles sabem o que representa esse governo [do presidente Jair Bolsonaro] pra gente, infelizmente”, revela.

Para ela, o atual governo do Brasil significa “uma ameaça às nossas vidas”, “com todos os decretos que estão sendo aprovados, para posse de armas, reforma da previdência, como isso tudo vai precarizar a vida da população brasileira”. “O próprio discurso do presidente é misógino e racista, ele autoriza seus seguidores a agredirem pessoas nas ruas. A gente sabe muito bem o que isso vai significar para os povos indígenas, o massacre que vai ser, para os povos quilombolas, são ameaças diretas à nossa vida. Poder estar aqui na França é uma maneira de proteger, de conseguir algum tipo de proteção, sobretudo eu que estou no front, no dia a dia”, diz.

Feminismo branco X feminismo negro

Djamila, porta-voz e um dos pilares da construção do feminismo negro no Brasil, concentrou sua pesquisa de mestrado em duas feministas brancas históricas, Beauvoir e Butler, originárias do Hemisfério Norte. Seu mestrado, baseado numa análise comparativa com o feminismo negro, é prova de que as referências podem se entrecruzar e amplificar visões de mundo.

“São contribuições essenciais. Em 1949, ao lançar um livro chamado O Segundo Sexo, pensando a condição feminina, Beauvoir foi super atacada. Não dá para jogar fora. É o que, às vezes, muitas feministas negras não entendem. Uma coisa é você apontar o limite de uma análise. Outra é deslegitimar e desmerecer tudo”, avalia. “É claro que a Beauvoir, enquanto mulher francesa, acaba universalizando a categoria mulher, mas ela chega a tocar na questão racial, mas muito sob a perspectiva do homem negro, muito pelas contribuições dela com o [Frantz] Fanon e outros escritores negros”, analisa Djamila.

Para a filósofa, o segredo é apontar os limites e passa a pensar a partir de uma perspectiva antirracista. “É isso que falta muitas vezes aos feminismos. É impossível não reconhecer quando a Beauvoir pensa a categoria do Outro, a mulher como o Outro do homem. E a Grada Kilomba, feminista negra, vai completar dizendo que a mulher negra é o Outro do Outro”, diz. “O feminismo negro não é um recorte”, afirma. “Muito pelo contrário, a gente que pensa feminismo precisa pensar essencialmente por uma perspectiva de classe e de raça”, declara Djamila. “O feminismo negro não exclui, amplia”, diz a filósofa e ativista brasileira.

A prostituição, a feminização de nomes, o racismo na França e outras polêmicas

Na França e na Europa, o tema da prostituição divide o movimento, as chamadas abolicionistas, de um lado, que defendem o fim do trabalho sexual, e as feministas pro-sexo, que defendem melhores condições de trabalho para as trabalhadoras do sexo. No Brasil, Djamila Ribeiro conta que a prostituição é um tema que “racha o movimento feminista, mas racha mesmo! Há muitas brigas, pesadas. Pesadíssimas (risos). O que eu entendo é que às vezes as pessoas querem tratar um tema tão complexo de uma maneira simplista, e não dá, como a Beauvoir fala, para ser amante de fórmulas simples’”, analisa.

“Entendo que muitas mulheres se encontram em condições aviltantes e repressoras para elas e, ao mesmo tempo, penso que, se essas mulheres existem, como lidaremos com a não-regulamentação dessa profissão?”, pondera a escritora e ativista. “Precisamos discutir sobretudo com as prostitutas. O lado positivo disso no Brasil é ver organizações de prostitutas feministas, que se auto intitulam putafeministas, que elas possam participar dessa discussão também, que a gente não fique discutindo no lugar delas”, diz Djamila. “Existem hoje organizações de trabalhadoras sexuais no Brasil que são contra a regulamentação, e outras que são a favor. Ao mesmo tempo eu entendo que muitas mulheres estão nessa profissão por conta de uma vulnerabilidade social, mas ao mesmo tempo é necessário pensar nas condições reais de trabalho delas”, conta.

Sobre as Radfems, como são chamadas as feministas radicais, Djamila relata que “existem muitas no Brasil”. “São feministas que atacam pessoas trans nas redes, têm uma postura de ataque, da qual discordo completamente. Por outro lado, acho um desrespeito com a teoria radical [corrente do feminismo], da década de 1960, que tem pensadoras importantes. Muitas vezes, acho que nem essas meninas que se manifestam na Internet leram a teoria radical. Claro que essa teoria tem limites, muito marcados. Mas não é honesto, intelectualmente falando, descarta-la ou demonizá-la”, analisa.

A filósofa brasileira demonstrou surpresa ao saber que a pomposa Academia Francesa havia aprovado, em março de 2019, a feminização de nomes de profissões, após uma polêmica que durou décadas. Até então, profissões como “escritor”, “ministro”, “professor” e “médico” não possuíam, na língua francesa, equivalentes femininos. “Uau. A gente acha que no Brasil temos vários problemas, mas percebo que aqui também é necessário avançar. Só agora eu poderia ser chamada de escritora na França? Vejo com muita supresa. Como a linguagem é totalizante do masculino! E as pessoas não têm interesse em discutir isso, como se tivesse sido providencialmente fixado, e não socialmente construído”, observa. “A linguagem não é um amontoado de palavras, ela cria formas de vida, dizia [o filósofo austríaco] Wittgenstein. Ela carrega os valores da cultura. Se é uma cultura patriarcal, automaticamente a linguagem também o será”, diz. “E quando as pessoas falam que sempre foi assim e sempre será, as chamadas tautologias. Não, a gente tem que combater as tautologias e desnaturalizá-las”, afirma.

Sobre o racismo na França, Djamila comentou a série de ataques racistas sofridos pela ex-ministra da Justiça, Christiane Taubira, em 2016. Num destes episódios, ela chegou a ser chamada de “macaca” por Anne-Sophie Leclère, política ligada ao antigo partido da extrema direita francesa, a “Frente Nacional”. “A gente percebe o quanto que, independente dos lugares que a gente alcance, o racismo não deixa de existir. Até a esquerda brasileira tem dificuldade em discutir raça. A classe sempre se sobrepõe à raça, mas elas, na verdade, andam entrecruzadas. Veja, mesmo uma ministra francesa não ficou livre do racismo. Mesmo podendo vir de uma classe mais privilegiada, mas ela continuou sendo negra. Ainda somos tidas como as chatas, quando tentamos discutir essa questão no Brasil”, relata.

Sobre o termo “racialisé(e)”, ou “racializado(a)”, polêmica expressão francesa que define que uma pessoa ou um grupo de pessoas pode ser identificado a uma raça, a partir de sua aparência, Djamila Ribeiro afirma saber que “a discussão racial na França é difícil”. “Mas sinto que há muito grupos, inclusive de mulheres imigrantes, fazendo discussões aqui. Mas é interessante, porque as pessoas brancas não percebem que elas também são racializadas (risos). No Brasil chamam a gente de identitários”, diz.

“[A antropóloga brasileira] Lélia Gonzales dizia que nós não compartilhamos só dor, mas também legados de luta. As mais velhas me ensinam a importância de não perder a perspectiva histórica. Antes de mim, houve o quilombo dos Palmares”, conclui Djamila Ribeiro, que deixou a França nesta primeira temporada, nesta sexta-feira (15).

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