Festa de São Jorge é a utopia de um Rio respeitoso e seguro

Católicos e religiosos de matriz africana, ombro a ombro, rezam e prestam homenagem ao santo guerreiro

Poucas celebrações são mais reveladoras da (idealizada) alma carioca e, ao mesmo tempo, do fosso de brutalidade em que nos metemos. Todo 23 de abril, gente de diferentes regiões do Rio de Janeiro — que o turismo predatório e festivo não profane mais esse traço cultural da cidade — se encontra em plena madrugada para louvar São Jorge. É a missa da alvorada que move os fiéis. Às 5h, antes dos primeiros raios de sol, católicos e religiosos de matriz africana, ombro a ombro, rezam e prestam homenagem ao santo guerreiro, associado ao orixá Ogum na umbanda e em casas de candomblé. O movimento começa na virada da meia-noite, tanto no entorno da igreja vizinha à Central do Brasil quanto na matriz, nos arredores da estação de trem de Quintino, na Zona Norte. Tudo para saudar o padroeiro do estado, com São Sebastião, segundo lei sancionada em 2019 pelo (breve) governador Wilson Witzel —o feriado, instituído em 2008, foi obra de Sérgio Cabral.

A festa de São Jorge é a utopia de um Rio respeitoso a todos os credos e seguro a todas as pessoas. Antes do amanhecer e ao longo de todo o dia, multidões circulam, se aglomeram e festejam, cada qual com seu credo, a divindade que aproxima pagadores de promessa e macumbeiros, artistas e policiais, bombeiros e sambistas. Na última quarta-feira, pasmem, assistiram à missa na igreja do Centro a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e o comandante da PM-RJ, coronel Marcelo Menezes de Nogueira; os casais de mestre-sala e porta-bandeira da Acadêmicos do Salgueiro, Sidclei Santos e Marcella Alves, e da Unidos do Viradouro, Julinho Nascimento e Rute Alves; integrantes da velha guarda da Estácio de Sá e o cantor e compositor Jorge Benjor. Este, ano sim, ano também, encerra a celebração entoando “Jorge da Capadócia”. De quebra, o padre Wagner Toledo rendeu homenagens a outro Jorge (Mario Bergoglio), o Papa Francisco, que morreu no início da semana. Em plena Avenida Presidente Vargas, um palco serve de altar; na esquina, pais e mães de santo abençoam com amarrados de folhas; camelôs vendem de café com bolo a fitinhas, toalhas e camisetas.

A cor predominante nos festejos de Jorge é o vermelho, cor da capa do santo. Está aí o ponto de estupefação. O Rio da intolerância religiosa, dos territórios interditados, da rua hostil aos vulneráveis no 23 de abril se torna capital do respeito a todos os credos, da livre circulação, da amabilidade. Flagra-se gente da oração e da hóstia aos abraços com a gente dos fios de contas. Na mesma cidade em que, em plena Sexta-Feira Santa, Tainá Santos da Paz, de 33 anos, iniciada no candomblé há 16, teve as guias de Oxumaré, Oyá e Oxum jogadas no lixo por servidores do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (UniRio), onde estava internada para tratamento contra um câncer de mama. Ontem ela registrou o episódio de racismo religioso (Lei 14.532/2023) na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.

Homens, mulheres, pessoas idosas, crianças circulam sem medo no breu da madrugada, em Quintino e no Centro, em ato de fé por São Jorge. Tiram o celular do bolso e da bolsa para, lanternas acesas a pedido do padre, fazer do asfalto céu estrelado. No mesmo estado em que, no ano passado, 21.423 aparelhos foram roubados, salto de 38,2%, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ). Em 2024, foram registrados 58.574 roubos de rua, alta de 13,6% sobre 2023; 30.876 (+0,9%) roubos a transeuntes; 30.934 (+39%) roubos de veículos.

Na Região Metropolitana, a cada dois dias, uma pessoa é vítima de bala perdida, segundo o Instituto Fogo Cruzado; sete em cada dez foram alvejadas em bairros da Zona Norte. Abril nem chegou ao fim, mas sete crianças de zero a 11 anos já sofreram disparos de armas de fogo no Grande Rio; uma morreu. Da virada do ano até os primeiros dias deste mês, 39 agentes de segurança foram atingidos por tiros; 23 perderam a vida.

Gastón Fernando Burlón, turista argentino, pretendia visitar o Cristo Redentor numa tarde de dezembro passado. Mal orientado pelo GPS, entrou por engano num acesso ao Morro dos Prazeres. Traficantes o alvejaram na cabeça. Ele foi socorrido, mas morreu dias depois. O Rio rubro em igrejas, rodas de samba, festas e feijoadas em homenagem a São Jorge é o mesmo que interdita a cor nas comunidades dominadas pelo Comando Vermelho, facção do tráfico dominante na cidade. O crime impõe código de conduta que pode ser fatal para os incautos. No conjunto de bairros autodenominado Complexo de Israel por outro chefe de grupo armado, é proibido vestir branco e exibir fios de contas; terreiros foram banidos. Sebastiana Luiz da Silva, de 57 anos, dez dias atrás, acabou morta quando participava de um culto evangélico em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Seu grupo de orações foi confundido por criminosos com milicianos rivais, por usarem roupas pretas.

As dores do ano todo contrastam com a delícia de ser carioca no dia 23 abril, de Jorge. Que a fé o prolongue.

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