Foi avanço, não retrocesso

A proposta original de Reforma da Previdência era injusta com as mulheres; mudanças são bem-vindas

Por Flávia Oliveira, do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

Não foram recuo do governo, mas avanço da sociedade, as alterações propostas pelo relator Arthur Maia (PPS-BA) nas regras de aposentadoria das mulheres brasileiras. A proposta de reforma arquitetada pela equipe econômica do presidente Michel Temer era profundamente injusta do ponto de vista de gênero, em particular com as trabalhadoras rurais. Ancorava-se em dados demográficos menos relacionados com a Previdência do que parecem; e desprezava desigualdades, tanto no mercado de trabalho quanto nas relações familiares, que o Brasil tem enfrentado muita dificuldade para superar.

Na origem, a PEC 287 pretendia igualar em 65 anos a idade mínima de aposentadoria dos brasileiros. Hoje, na área urbana, mulheres podem se aposentar aos 60, homens, aos 65; no campo, aos 55 e 60, respectivamente. Portanto, de cara, a mão de obra feminina no meio rural teria de esperar ou trabalhar uma década a mais para se aposentar por idade. Na versão preliminar do relatório, Maia propôs elevação gradual da idade mínima de 55 para 57 anos para trabalhadoras do campo e de 53 para 62 para as das cidades. A aposentadoria por tempo de contribuição sem piso etário deixará de existir.

O principal argumento dos que defendem a equiparação imediata da idade de aposentadoria de homens e mulheres está na esperança de vida. De fato, o IBGE estimou na tábua de mortalidade que, em 2015, a expectativa de vida ao nascer era de 79,1 anos para elas e de 71,9 para eles — diferença, portanto, superior a sete anos. O detalhe omitido é que essa assimetria cai quando se analisa a tabela de sobrevida — ou seja, o número de anos que determinada população viverá se alcançar certa idade. Mulheres vivem mais, porque a mortalidade dos homens brasileiros é alta na juventude. Isso tem a ver com acidentes de trânsito e homicídios, outro par de mazelas nacionais. Rompida a barreira dos óbitos por causas externas, a longevidade feminina se aproxima da masculina. Aos 55, por exemplo, a diferença de idade cai para quatro anos (83 para elas, 78,9 para eles); aos 65, para três (84,8 e 81,7, respectivamente).

É verdade que as mulheres aposentadas, hoje, por tempo de contribuição (30 anos, contra 35 para eles) são mais jovens que os homens na mesma situação: 53 contra 55,7 anos. Mas a mão de obra feminina enfrenta no mercado adversidades que a masculina não encara. A taxa de desemprego delas (13,8% em dezembro de 2016) é maior que a deles (10,7%) e o nível de ocupação, menor (44,5% contra 64,3%). São distâncias que pouco diminuíram desde 2012, quando o IBGE inaugurou a Pnad Contínua, e evidenciam a dificuldade de inserção feminina no mundo do trabalho — principalmente as mais pobres e menos escolarizadas, que normalmente se aposentam por idade.

Mulheres também estão mais expostas à informalidade, porque entram no mercado a partir do emprego doméstico e nas áreas de comércio e serviço. Do contingente que trabalha em casa de família, 40% não contribuem para a Previdência, informa o IBGE. Significa que terão mais dificuldade para cumprir a exigência de tempo de contribuição, que subirá de 15 para 25 anos se a reforma for aprovada. Equiparada a idade mínima à dos homens, teriam de esperar ainda mais pela aposentadoria.

Por fim, há a assimetria da dupla jornada. Em média, somando afazeres fora e dentro de casa, as brasileiras trabalham cinco horas a mais que os homens a cada semana; são 11 dias de labuta adicional por ano; um mês a mais a cada triênio. Mês passado, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou a Nota Técnica 35, “Previdência e gênero: por que as idades de aposentadoria de homens e mulheres devem ser diferentes?”. Os autores, a economista Joana Mostafa à frente, enfileiram evidências da persistente assimetria de gênero no Brasil. E concluem: “Ignorar as desigualdades é penalizar parte considerável da população, sem que esteja sendo oferecida alternativa para solucionar os problemas que geram tais desigualdades”. Enquanto o hiato persistir, a diferença de idade se fará necessária. Por isso, a mudança no projeto de reforma previdenciária é avanço.

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