“Funk: entre o santo e o profano, prefiro o empoderamento da mulher”

Marielle Franco, coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, escreveu em sua coluna semanal no Favela 247 crítica à culpabilização do Funk pela mídia no recente caso do estupro coletivo de uma menina de 16 anos, como fez o colunista d’O Globo Artur Xexéo no dia 5 deste mês: “A omissão da cultura do estupro é uma estratégia para que esta não seja encarada como algo real a ser combatido de fato. Responsabilizar o funk sobre qualquer violência social (…) reforça os estereótipos contra a favela e a juventude que o curte”, afirma Marielle, que conclui: “A igreja não me tornou uma santa e o funk não me tornou uma puta.

Por Marielle Franco Do Brasil247

Ainda que não haja problema algum em ser puta, fujo desta dicotomia: queremos ser livres. Esses dois espaços me ensinaram a tolerância, o respeito à diversidade e a busca de diálogo para superar os problemas reais”

A minha adolescência na favela foi de muita diversão aos fins de semana. Entre as missas aos domingos e os bailes funk aos sábados, circulava na feirinha da Teixeira Ribeiro para comprar a melhor roupa para esses dois espaços que muitos podem considerar dicotômicos, santo e profano. Engano seu, contraditório é achar que esses dois ambientes não podem dialogar. Sim, porque a opção de diversão e aglutinação da juventude se davam nesses ambientes na minha época de Maré e ainda hoje podemos observar isso. Ir à igreja ajudava na minha relação com Deus, mas ir ao baile participar de concursos de galera e, pasmem, dançar em frente ao paredão de som de uma equipe famosa era tudo o que mais gostava. E o que tem de errado nisso?

O ódio ao funk disseminado por muitas pessoas com visibilidade nos meios de comunicação ganha a máxima potência quando se busca caracterizar os autores de uma violência bárbara como funkeiros que estavam em um baile. A criminalização é histórica, basta uma breve pesquisa na Internet que encontramos manchetes em que o funk é o principal autor de todas as mazelas da nossa sociedade. A novidade, no entanto, é perceber que para culpabilizar o funk, muitos críticos ignoram a cultura do estupro presente em nosso cotidiano. Foi o que fez o jornalista Artur Xexéu ao citar, em artigo no O Globo (5/6), o estupro coletivo sofrido por uma adolescente em uma favela da zona oeste.

A omissão da cultura do estupro é uma estratégia para que esta não seja encarada como algo real a ser combatido de fato. Responsabilizar o funk sobre qualquer violência social, além de servir para desviar a atenção do que realmente interessa, reforça os estereótipos contra a favela e a juventude que o curte. Não se questiona, por exemplo, o fato de um deputado federal, no ápice de sua arrogância e machismo, declarar que não estupraria uma deputada porque ela não merece. A cultura do estupro está no Congresso Nacional e não mereceu o devido destaque nas avaliações daqueles que se intitulam formadores de opinião. Quer dizer que uns podem estuprar e outros não?

O jornalista ainda ousou criticar as feministas por supor que estas se calam diante do machismo no funk. Quanta ignorância e desinformação em um só artigo. O seu machismo velado e preconceituoso o impede de observar a diversidade da luta das mulheres, mesmo que o status de “feminista” não seja reivindicado. O próprio funk desmente essa visão superficial sobre a cultura da favela quando as MCs invertem a lógica de que as mulheres são meros objetos sexuais. Valesca Popozuda, Carol de Niterói, Tati-Quebra-Barraco, Maysa Abusada e outras tantas deixam explícitos seus desejos, gritam para todos os cantos que são donas de seus corpos e somente elas têm poder sobre eles. O que queremos dizer com isso é que o próprio funk conta com representantes na luta contra a cultura do estupro, protagonizada por mulheres faveladas em busca de liberdade, de uma cultura de direitos das mulheres sobre seus corpos.

Não há nada de errado em frequentar bailes funk. A igreja não me tornou uma santa e o funk não me tornou uma puta. Ainda que não haja problema algum em ser puta, fujo desta dicotomia: queremos ser livres. Esses dois espaços me ensinaram a tolerância, o respeito à diversidade e a busca de diálogo para superar os problemas reais. A cultura do estupro é um problema real, e entre o santo e o profano, eu prefiro o empoderamento da mulher. De todas elas.
*Marielle Franco, cria da Maré, é socióloga graduada pela PUC-Rio, mestra em Administração Pública pela UFF e coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.

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