Participação da mulher no gênero começou na fundação mitológica em torno da ‘grande mãe’ Tia Ciata
por Leonardo Lichote no O Globo
No princípio era a mulher. O mito da criação do samba conta que ele nasceu em torno de uma delas, a grande mãe Tia Ciata — na verdade uma das muitas tias (quase todas) baianas que articulavam organicamente pela cidade uma rede negra, (afro)religiosa, de batuques e saberes em suas casas. Era nesse espaço de encontro, entre a festa e o rito, que se deu a alquimia que viria a resultar no samba. O que não impediu que ao longo de sua história o gênero refletisse o machismo da organização patriarcal da sociedade brasileira — machismo expresso não só na invisibilização de artistas mulheres (ainda uma realidade, como mostra a reportagem de Marina Gonçalves nesta edição), como nos versos das canções.
Apesar da liderança inegável que exerciam em suas comunidades e especificamente no contexto do samba, mulheres como Ciata — e mais tarde outras como Surica e Doca (na Portela), ou Neuma e Zica (na Mangueira) — não tinham direito à voz ativa no discurso artístico, nas letras de música. Nas escolas de samba, assumiam papéis coadjuvantes, apesar de fundamentais, de pastoras ou baianas (matriarcas portadoras da tradição, remetendo às origens do gênero), diluídas na coletividade. Ou, com atenção individual, como figuras de beleza, da graça feminina, reflexo de um olhar masculino: porta-bandeiras, destaques ou passistas. Nas rodas de samba, sua função era mais agregadora e relacionada com o entorno do samba (a organização dos encontros, a comida que era servida ali) do que com a música propriamente dita. “Pagode do Vavá”, de Paulinho da Viola, é precisa ao documentar esse cenário, como crônica: “Provei do famoso feijão da Vicentina/ Só quem é da Portela é que sabe que a coisa é divina”.
Como o discurso não era dela, a mulher aparecia nas letras fundamentalmente como musa, sedutora — o que muitas vezes era sinônimo de traiçoeira. Noel Rosa, por exemplo, cantou em “Mentiras de mulher”: “Se alguém vai pro cemitério/ É porque levou a sério/ As palavras da mulher”. O compositor retoma o tema em “Pra que mentir” (“Se tu ainda não tens a malícia de toda mulher?”). Em “Mulher indigesta”, ele foi ainda mais longe: “Mas que mulher indigesta/ Merece um tijolo na testa”. Numa sociedade que considerava — ainda mais do que hoje — a violência doméstica como um comportamento aceitável e uma questão íntima, que competia apenas ao casal, era possível que surgissem versos como “Lá vem ela/ Chorando/ O que é que ela quer/ Pancada não é, já dei/ Mulher da orgia/ Quando começa a chorar/ Quer dinheiro/ Dinheiro não há/ Carinho eu tenho demais pra vender e pra dar/ Pancada também não há de faltar”.
As “pancadas” não eram raras. Moreira da Silva cantava: “Na subida do morro me contaram/ que você bateu na minha nega/ Isso não é direito/ Bater numa mulher que não é sua”. Heitor dos Prazeres louvou a “Mulher de malandro” (“Mulher de malandro sabe ser/ Carinhosa de verdade/ Ela vive com tanto prazer/ Quanto mais apanha a ele tem amizade”). Os exemplos vêm até mais recentemente. Lançada em 1999, “Faixa amarela”, sucesso na voz de Zeca Pagodinho, listava agressões: “Mas se ela vacilar/ Vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e quatro costelas”.
O machismo não se limitava apenas à agressão física. Ele aparecia no louvor a modelos de mulher como “Amélia” (“Às vezes passava fome ao meu lado/ E achava bonito não ter o que comer/ …/ Amélia que era mulher de verdade/ Amélia não tinha a menor vaidade”). Ou, em oposição, na condenação à mulher representada por “Maria Rosa” (“Vocês estão vendo aquela mulher de cabelos brancos/ Vestindo farrapos, calçando tamancos/ Pedindo nas portas pedaços de pão?/ …/ Os trapos de sua veste não é só necessidade/ Cada um representa para ela uma saudade/ De um vestido de baile ou de um presente, talvez/ Que algum dos seus apaixonados lhe fez/ …/ Vocês marias de agora, amem somente uma vez/ Pra que mais tarde esta capa não sirva em vocês”).
Se as compositoras eram (e ainda são) em número bem menor do que os homens no mesmo campo, ao longo de todo o século XX o samba foi representado por vozes femininas. Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso (especialmente no disco “Elizeth sobe o morro”), Clementina de Jesus, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dorina, Teresa Cristina e Mart’nália e muitas outras garantiram visibilidade para o gênero, seja nos veículos de massa ou na guerrilha dos palcos menores.
A entrada de mulheres compositoras em cena, marcadamente a pioneira Dona Ivone Lara, abriu outro espaço para a voz feminina. Importante lembrar que a imperiana — cujos primeiros sambas eram apresentados na escola por seu primo, Mestre Fuleiro, como se fossem dele — foi a primeira a ter um samba-enredo no Grupo Especial (“Os cinco bailes da história do Rio”, em 1965), mas antes dela Carmelita Brasil já havia composto para a Unidos da Ponte.
Na década seguinte, Leci Brandão se tornaria a primeira mulher a entrar na ala de compositoras da Mangueira, já representando outra fase da vida social brasileira. Ativista e líder comunitária (ela se tornaria deputada em 2010, filiada ao PCB), ela unia em seu discurso a perspectiva feminina, a conscientização política e a valorização das matrizes religiosas e culturais afrobrasileiras. “Zé do Caroço” (sobre um herói, liderança da favela), um clássico do seu repertório, é bastante representativo de sua postura.
Uma figura feminina fundamental para o rumo que o samba tomaria a partir dos anos 1990 — especialmente na formação da geração Lapa, em torno de bares como Semente — foi Cristina Buarque. Cantora e amante do samba, seu conhecimento enciclopédico da memória do gênero fez dela um pólo em torno do qual bebiam jovens como Pedro Miranda. A partir daquela geração que vicejou sob os Arcos, do refortalecimento do samba junto à classe média universitária (com novas rodas e eventos como o Trem do Samba), o surgimento de espaços de difusão livres da preponderância masculina (como a Escola Portátil de Música) e o próprio movimento da mulher na sociedade brasileira nas últimas duas décadas criaram as bases para que surgisse a geração de instrumentistas, cantoras e compositoras que se apresentam no Dia da Mulher Sambista.
A percepção do lugar da mulher no samba hoje e a consciência ativa da construção desse lugar pode ser ilustrada, de maneiras diferentes, em dois sambas surgidos nos últimos anos — num contexto crítico a todo o histórico machista do gênero (e, vale reforçar, do Brasil que existe para além das fronteiras das rodas). Um é a versão feminista de “Mulheres” (samba de Toninho Geraes consagrado por Marinho da Vila), feita pelo grupo Samba Que Elas Querem: “Mulheres cabeça e muito equilibradas/ Ninguém tá confusa, não te perguntei nada/ São elas por elas/ Escuta esse samba que eu vou te cantar”. Outro exemplo é a letra original de “Mil réis”, de Candeia, recuperada por Teresa Cristina (que a ouviu de Noca da Portela). Na forma como o compositor a gravou, o homem se dirige a mulher acusando-a: “Tentarei te esquecer, perdida/ Perdida, porque não honraste o homem”). Na — arrepiante — versão lembrada por Teresa, a voz é da mulher: “Tentarei te esquecer, sentida/ Sentida, porque tu não foste homem”.