Ao tentar compreender tudo o que aconteceu comigo nas últimas 12 horas, ainda custo acreditar. O meu corpo dói enquanto escrevo, uma dor física e psíquica, uma almágama de medo e revolta. O meu corpo todo treme, como se ainda estivesse recebendo socos e ponta pés, resisti as várias tentativas de me desumanizar.
por João Henrique Custódio via Guest Post para o Portal Geledés
Entre amigos, todos brancos, sempre fui indagado por eles, se se na minha vida eu havia sofrido alguma violência policial, por ser afro-descendente. Eu, sinceramente, nunca entendia o porque da pergunta? Internamente me perguntava será que todo afro-descendente passar por esse questionário com seus amigos brancos. O racismo policial seria um fato social com todos os afro-descendentes ou meus amigos me viam como uma espécie rara diante deles, e que por ser tão rara vive situações incomuns, estruturalmente desigual, e por isso a curiosidade? Não, eu nunca cometi um crime, eu dizia, e também nunca fui abordado por nenhum policial, pelo contrário sempre que necessitei de auxilio eles sempre foram na medida do possível cordiais.
Agora, com o meu corpo tremendo começo a sentir na carne os vários sentidos que aquela pergunta assume para um afro-descendente. Estava me refazendo de problemas pessoais e recebi o convite de um amigo para se reunir em seu apartamento com outros amigos, para relaxarmos. Ele havia se candidatado a deputado estadual pela primeira vez e essa semana a vida dele voltara à normalidade. Na reunião todos já se conheciam de outras ocasiões e montamos um debate do qual todos ali presentes eram candidatos jocosos do pleito pretérito.
Da varanda do apartamento, no 25o andar, a música alta vinda da região do Largo São Francisco nos fazia um convite de descer e estender a reunião. Diante do fim do nosso debochado debate, revolvemos seguir o som. Caminhamos poucas quadras e ao chegarmos havia grades fechando a passagem nas calçadas e na rua, com um único local de passagem aberto para pedestre, no meio da rua, não havia placas indicando o porque do fechamento da via pública e também não fui inquirido por ninguém ao entrar, não havia muita gente, caminhei em direção a multidão. Há muito tempo não saia, estava estudando e com problemas de saúde na família, a musica me lembrava do ano que entrei na faculdade, várias lembranças boas me vieram a memória. Então, me virei para trás para ver meus amigos e dizer o que sentia, mas estava só de longe perto da entrada vi um deles com o braço levantado e com uma pulseira verde sinalizando que eu devia voltar, provavelmente para pegar a pulseira imaginei.
Caminhei poucos passos, por trás levei uma chave de braço, tentei me soltar e comecei a levar vários socos próximos da minha bacia e nas costelas, e chutes nas pernas. Não entendia nada, só sentia os golpes, pensei que se caísse no chão eu poderia ser morto com chutes na cabeça, fiz o maior esforço físico para não cair.
Lembrei dos skinheads e imaginei que poderiam ser eles, pois sou gay, tenho parceiro, ele estava ali tentando me ajudar. Eu ouvia várias vozes de pessoas, e não conseguia identificar. “Não bata nele!”” Largue o menino!” Fui arrastado e golpeado várias vezes até a grade que dividia a rua. Largaram- me lá, ergui meu corpo para ver meus algozes, vi o rosto deles mesmo sem óculos e, eles não eram skinheads, eram três seguranças, três homens grandes, muito grandes comparados aos meus 58 quilos. Olhei com para eles com tanta raiva mas me silenciei, não tinha força para fazer nada e eu sabia que aquilo era só o começo, eu não poderia cair.
Eu andei com muita dificuldade até a esquina da rua Senador Feijó, de lá liguei para polícia. Meus amigos conversaram com várias pessoas e elas os alertavam sobre o risco de chamar a polícia, pois um dos meus agressores era um policial fazendo “um extra”, como segurança da festa. Os meus amigos se dividiram diante da ameaça, eu vi nos olhos deles o medo, eu me perguntava por que eles estão com medo? Eu não posso ter medo! Quanto mais a policia demorava a chegar mais meus amigos se desesperavam, o agressor “policial” procurou meus amigos e ameaçou-os dizendo: “ se chamar a polícia coisas graves acontecerão”.
Suportei todas as ameaças e deixei meus amigos livres para irem embora, o risco de ficar ali era meu e não deles, mas eles não me abandonaram.
A polícia chegou, e começou uma profusão de versões de pessoas que nem alia estiveram, o suposto policial procurou um soldado que estava distante da confusão e sozinho. Eu o segui, se ele queria persuadir os policiais para tornar tudo “pizza”, eu queria ouvir. Ele tentou me intimidar diante do policial me chamando de “neguinho você é um merda”, outros policiais surgiram e ele se escondeu atrás da grade.
Os PM me disseram que nada poderia ser feito, que eles iriam me levar para delegacia e eu iria registrar um boletim de ocorrência, e depois iria ao IML, na delegacia descobri que a festa foi produzida pelo Centro Acadêmico XI de agosto, da Faculdade de Direito-USP.
Começo a sentir na carne os sentidos daquela pergunta dos meus amigos, o racismo não está somente na PM, como o senso comum costuma indagar, o racismo está nas micros relações, nas reentrâncias do dito e não dito, em todos os lugares públicos ou privados em que não há negros ou pardos, ou quando lá eles estão eles são subalternos. Nos acostumamos ver uma empregada negra ou um segurança negro, mas “estranhamos” ver um médico negro, a ausência de afro-descendentes denuncia a nossa exclusão e o quão nossa sociedade é sim racista. O racismo estrutura todas as relações sociais, ele da direitos e os nega, constitui os cidadãos plenos do neguinho, quem pode pagar e quem não pode, e, nesse caso, o nosso racismo adquire outra forma ele não está na pele e no fenótipo, ele está na roupa, no seu perfume, nos vocábulos, ele está no seu bolso.
Por isso eu nunca fui abordado por um policial, pois para eles eu sou branco de classe media. Ouvi dos PMS ” você e seus amigos são pessoas de bem só de olhar da para ver, a lei estará do lado de vocês (sic)”. Os soldados classificaram eu e meus amigos como “ pessoas de bem”, para os policiais eu sou uma pessoa de bem, visto que sou branco de classe media, assim como, os meus amigos que de fato são brancos e também de classe media, No meu boletim de ocorrência, o escrivão não me perguntou a minha cor, por que para ele a minha cor já estava dada pela minha classe social, e por ser de classe media eu sou branco e não negro.
Mas por que, então, os seguranças da festa “Cervejada do Peru“, promovida pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, agrediram-me de forma tão vil? Por que eles não viram como “branco” de classe média? Por que não conversaram comigo como fizeram com os meus amigos brancos? A resposta talvez esteja dentro da Faculdade de Direito USP e no seu Centro Acadêmico, que possui segundo 1 a FUVEST, em 2014, 16,4% de pardos e 4,5% pretos, ou seja, os seguranças da festa me identificou como negro e, portanto, um intruso em lugar de maioria branca, que por não estar no seu devido lugar fora dali, deve ser removido como força desmedida, para que aprenda o seu lugar de direito, já que eu para eles não possuo humanidade nem diretos e deveres.
Se eu pudesse responder a todos os meus amigos que fizeram aquela pergunta, eu diria a eles que o racismo está nos olhos, na forma como sobredeterminamo o mundo. Hoje nasci negro!