A filósofa e ativista Sueli Carneiro é a primeira intelectual negra a receber o título de doutora honoris causa pela Universidade de Brasília (UnB). A decisão foi aprovada e aclamada na última sexta-feira (18), em reunião do Consuni (Conselho Universitário), presidido pela primeira reitora da instituição, a professora Márcia Abrahão Moura. Em 2022, a UnB alcança a marca de 60 anos de existência e, até a homenagem a Sueli, já havia outorgado 66 títulos de professor e doutor honoris causa, conforme listas publicadas no site oficial.
Desse total, apenas sete mulheres foram agraciadas, todas vistas como brancas. Homens indígenas, negros ou não brancos totalizam seis casos: Ailton Krenak (2021), Abdias do Nascimento (2006), Milton Santos (1999), Dalai Lama (1999), Calyampudi Radhakrishna Rao (1998) e Nelson Mandela (1990). Ou seja, para cada dez títulos para homens brancos, temos 1,9 representando todos os demais segmentos identificados por gênero e raça, sendo que mulheres indígenas e pessoas trans jamais foram homenageadas.
É indiscutível a importância do reconhecimento institucional das trajetórias intelectuais dessas agora catorze personalidades. No caso de Sueli Carneiro, a conquista chega numa boa hora para abrir novos caminhos e iluminar o longo percurso de lutas pelo reconhecimento de mulheres negras como sujeitas de conhecimento, travadas não apenas nos espaços acadêmicos, mas também neles. Isso vale também para a recente aprovação do título a Ailton Krenak, a inaugurar a presença indígena naquele panteão.
As duas iniciativas foram impulsionadas por integrantes do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, localizado no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (PPGDH/CEAM), destacando-se nesse processo a professora Vanessa Castro e o professor Wanderson (Uã) Flor do Nascimento. A dupla foi responsável pela escrita dos respectivos memoriais que subsidiaram as propostas.
O sucesso obtido por essas provocações à comunidade universitária, todavia, não deve ser visto como garantia da resolução de conflitos e disparidades que marcam a centralidade do racismo e do sexismo na organização do cotidiano das instituições brasileiras. Para além da dicotomia “otimismo ou pessimismo”, um copo meio cheio é também um copo meio vazio.
A julgar pela desproporção da presença dos equivocadamente chamados “outros” nas atuais listas de personalidades que se distinguiram “pelo saber ou pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos”, muito há de ser feito para estarmos perto de ocupar pelo menos a metade dessas deferências. Portanto, um olhar atento aos ganhos, às perdas, aos riscos e às possibilidades mantém-se imprescindível. E isso não se restringe à UnB.
O desafio de superar o lugar de excepcionalidade
Sabemos que a História não se resume a nomes e datas, mas nomes e datas, quando bem-posicionados, podem ser úteis para que histórias sobre práticas de silenciamento e exclusão sejam contadas e contribuam para a desnaturalização das desigualdades. Ainda mais se forem postas a funcionar em contextos de reflexões coletivas e articuladas, entre pessoas que se autorizam a questionar o que lhes é apresentado como algo irreversível.
Exemplo disso é que, se nos sentimos confortáveis apenas colecionando episódios sobre a primeira pessoa negra ou indígena a se destacar em atividades intelectuais de tempos em tempos, não rompemos com o vício que nos fixa no polo oposto, de sujeitos essencialmente estranhos ao universo do conhecimento, em sentido amplo e denso.
Como demonstrado pela própria Sueli Carneiro, em seus textos e falas, a destruição do pensamento das gentes negras e indígenas é um projeto de dominação inaugurado por colonizadores brancos há séculos, mas até hoje esse epistemicídio não se completou. O desconhecimento a respeito da variedade de saberes mobilizados por esses indivíduos e grupos é parte das dinâmicas de desumanização. Ao mesmo tempo, os enfrentamentos em defesa da produção intelectual dos segmentos sociorraciais negros e indígenas são, por si, demonstrações de que a imagem de vencidos e derrotados não dá conta do que temos vivido há gerações.
A humanidade daquelas e daqueles que elaboram sobre o vivido no passado e no presente e criam possibilidades futuras de bem comum, mesmo que em situação de desvantagem social, segue tendo uma materialidade inquestionável. Trata-se do que foi sintetizado por Eliane Potiguara no poema “Identidade Indígena”, de 1975, ao afirmar que “nos recusaremos a morrer”, algo que recentemente Conceição Evaristo reforçou na célebre frase “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.
Investir numa compreensão profunda acerca das demandas que conectam intelectuais negros e indígenas, em especial as mulheres negras e indígenas, parece ser fundamental até mesmo para evitarmos cair na ilusão de que a simples concessão ou negação de títulos honoríficos pode nos dar a justa medida do que somos.
Afinal, tanto Conceição Evaristo não precisou da chancela da Academia Brasileira de Letras (ABL) para ser uma grande escritora quanto o valor literário dos escritos de Eliane Potiguara não foi assegurado pelo título de doutora honoris causa que ela recebeu da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2021 – sendo a primeira vez que uma homenagem como essa foi feita a uma intelectual indígena na história brasileira. Esse entendimento serve também para interpretarmos os títulos post-mortem outorgados à historiadora negra Beatriz Nascimento (1942-1995) pela UFRJ, no final do ano passado, e pela Universidade Federal Fluminense (UFF), na última quarta-feira, 16 de março.
Isso significa dizer que, diante do histórico de violações cometidas contra populações negras e povos indígenas no Brasil, toda e qualquer medida de reparação é a princípio legítima e necessária, desde que invariavelmente seja operada em prol do desmonte do cenário em que apenas figuras masculinas, brancas, heteronormativas e eurocentradas ocupem o lugar de relevância efetiva e majoritária. O costume de lidar com paisagens ocupadas por protagonismos múltiplos certamente tem tudo para ser mais estimulante.
“Mas não sou eu só / Não somos dez, cem ou mil / Que brilharemos no palco da História. / Seremos milhões, unidos como cardume”
Eliane Potiguara
Ainda sobre datas e nomes que nos são valiosos, na tarde desta terça-feira, 22 de março, Ebomi Cici recebeu o título de cidadã soteropolitana na Câmara Municipal de Salvador. Numa iniciativa mobilizada por amigos e pesquisadores, como o antropólogo afro-pernambucano Fernando Batista, a homenagem foi defendida pelo vereador Sílvio Humberto.
Nascida na cidade do Rio de Janeiro, em 1939, Nancy de Souza e Silva, como foi batizada, vive em Salvador desde 1971. Foi iniciada no candomblé em 1972 no Ilê Axé Opô Aganju por Balbino Daniel de Paula, Obaràyí, único filho de santo ainda vivo da lendária Mãe Senhora, do Ilê Axé Opô Afonjá. Também amadureceu seus pensamentos na companhia do etnógrafo francês e babalawô Pierre Fatumbi Verger (1902-1996), tendo lhe auxiliado na catalogação das 11 mil fotos, que hoje compõem o acervo da Fundação Pierre Verger.
Ao longo das décadas, Ebomi Cici tornou-se uma profunda conhecedora das histórias dos orixás, chamadas de itans em língua iorubá. Hoje é reconhecida internacionalmente como uma das mais carismáticas contadoras de histórias afro-brasileiras, sendo sua importância intelectual reconhecida também por diversos pesquisadores acadêmicos. Esforços têm sido feitos para que ela seja homenageada com o título de doutora honoris causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e que isso contribua para retirar camadas de exotismo que insistem em sobrepor aos saberes que ela, como poucos, tem pleno domínio.
*Ana Flávia Magalhães Pinto é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.