A importância de Malcolm X para o rap nacional

Ilustres rappers comentam a importância da biografia e ideologia do líder negro norte-americano e símbolo da luta contra o racismo para o ethos do hip hop brasileiro.

Por Camila Soares Do Noisey

“O rap é a única música que reúne multidões pra falar de consciência” dizia Dexter no documentário Favela no Ar, lançado em 2007. E é assim desde o começo da década de 80, quando o hip hop começou a surgir no Brasil, um país que acabara de sair do regime militar, com justiceiros agindo nas periferias de São Paulo matando dentro das favelas, e, no centro, skinheads perseguindo e matando negros. O preto periférico caminhava sem voz e em condições sub-humanas de sobrevivência. Mas ao receber as boas novas de que, em um outro lugar, um preto como eles se fez ser ouvido e reivindicou direitos para si e seu povo, algo começou a acontecer.

Nesta terça (21), completam-se 52 anos do assassinato do icônico Malcolm X, o revolucionário líder norte-americano e símbolo da luta contra o racismo. Dono de uma oratória espetacular, discurso inflamado e libertador, e uma disposição militante imensa, teve sua personalidade forjada durante a dura trajetória de vida, a qual registrou em sua autobiografia, que em muito contribuiu para que, anos depois, os negros brasileiros se identificassem com sua vivência e se inspirassem em sua ideologia.

Durante a sua infância, presenciou sua casa ser incendiada por membros da Ku Klux Klan e seu pai ser brutalmente assassinado por supremacistas brancos. Era um dedicado aluno, mas após ser desacreditado por um professor que disse que um negro não podia ser advogado, mudou-se para Boston e assumiu uma vida boêmia até se envolver com a criminalidade e ir preso.

Foi na prisão, condenado a 11 anos por assalto a mão armada, que o jovem começou a sua trajetória militante. Se converteu à Nação do Islã e, sendo um leitor voraz e autodidata, começou formar ideais. Ali nasciam ideologias e formas de combate como resposta à tudo que sofreu como negro durante a sua vida. Malcolm prezava pela auto-estima do negro e pelo seu direito de responder às ações violentas do sistema também com violência. Saiu da prisão já com seu caráter forjado e compelido a conseguir seguidores para reforçar que negros deviam ter direitos civis. Com ousadia, chegou a debater em universidades de renome, como Harvard. Malcolm, durante a sua trajetória, percebeu que os problemas sociais enfrentados pelos negros não eram na verdade uma questão apenas de caráter teológico, mas sim, uma questão política, econômica e civil.

Quase todo mundo lembra de orelhada o nome do líder negro, e o hip hop tem papel importante nessa permanência. Aqui no Brasil, ele sempre esteve muito presente nas linhas dos Racionais MCs, 509-E, GOG, Thaíde, Rappin Hood, RZO entre outros. Em tempos de “racismo reverso” e o surgimento de MCs que defendem ideais conservadores e de caráter discriminatório — algo que vai totalmente contra a raiz do surgimento do hip-hop —, é essencial que uma das personalidades mais fortes na história da luta pelos direitos civis dos negros e cuja ideologia influenciou fortemente a raiz de protesto do rap nacional, seja relembrado. Por isso, fomos assuntar com proeminentes nomes do hip hop de hoje e ontem como KL Jay, Dexter, Diomédes e outros feras sobre a influência da vida e obra de Malcolm X para o rap nacional. Spoiler: é hiper importante.

KL Jay

Conhecemos Malcolm quando já éramos Racionais. Vimos um documentário do Public Enemy em que citavam ele, e fomos procurar saber quem era, e assim tivemos acesso à biografia. A grande influência que o Malcolm X deixou para os pretos do mundo todo foi: você precisa resgatar a sua auto-estima. Isso pra mim foi o grande lance que devia ser absorvido, porque o racismo se baseia em destruir a sua auto-estima desde criança. O preto já cresce achando que é menos que todo mundo. Quando você desconstrói esse plano, você enxerga o mundo e se posiciona no mundo, e ele passa a te respeitar. Você muda o seu olhar, o seu jeito de andar, a sua postura, e essa é a grande arma! Malcolm ensinou pra nós a ter auto-estima e quando você tem, ninguém te pega.

O Racionais aprendeu a agir pós Malcolm. Paramos de pedir dinheiro emprestado, empréstimo no banco. Montamos a nossa própria empresa, a Cosa Nostra, porque ele diz isso, que os pretos precisam ter a sua própria economia. E até hoje — na Boogie Naipe 85% dos funcionários são pretos, eu tenho a minha empresa, o Brown tem a dele. Fiz por exemplo a 4P com o Xis, o próprio nome da empresa já diz: “Poder para o Povo Preto”.

Os pretos têm muito problema com dinheiro, em saber lidar. A maioria de nós nunca teve, e quando conseguem, gastam tudo e retornam à miséria. Pós leitura do livro, a gente como grupo e como empresa evoluiu muito, se sustentou e sobreviveu e tentou passar muito disso nas letras também. O Racionais tá aí né mano? Tem sua própria empresa, sua própria produtora, sua própria economia e gera empregos.

Pra finalizar, ele também nos ensinou sobre como se defender. Muito da dita agressividade que tem nas letras do Racionais vem disso. De pretos entendendo que podem sim reagir! Que estamos em território inimigo. O Brasil pra mim é um território inimigo. E você deve reagir a violência que o estado te oferece, que a sociedade te oferece, que o racismo sempre ofereceu. Tem que ser malandro, tem que botar medo, não pode ser bobo. As pessoas precisam olhar pra nós e pensar “esses cara são problema, não vou mexer com eles não!”

Isso tudo foi uma corrente. Aprendemos com Malcolm e muitos aprenderam com os Racionais.

Dexter

Eu conheci o Malcolm primeiro por meio dos Racionais MCs, quando eu ouvi eles cantarem em “Voz Ativa”: “Precisamos de um líder de crédito popular como Malcom X em outros tempos foi na América, que seja negro até os ossos, um dos nossos e reconstrua nosso orgulho que foi feito em destroços”. Eu fiquei intrigado pra saber quem era. Logo em seguida o filme chegou no Brasil e eu fui ver, e ali ficou bem claro o porque o Racionais tava falando de Malcolm X. Era um cara que assim como nós era negro, veio do gueto e era hostilizado pela sua cor. Foi cafetão, passou pelo crime, e passou pela cadeia. Ali ele descobriu o islã e se tornou uma figura esplêndida e educativa. Se tornou um mestre!

Toda essa força e inteligência do Malcolm estavam destinadas a ultrapassar as fronteiras da América do Norte. Era inevitável a identificação por parte dos pretos do mundo todo. Ele foi tão além que hoje, 52 anos depois da morte dele, estamos aqui falando dele. Isso tudo chegou pra gente aqui de uma forma encantadora, porque na escola brasileira nem de Zumbi se fala da forma que se deveria. Não somos ensinados a ter referências fortes de homens e mulheres negras para nos inspirar, os heróis que aprendemos a admirar são sempre brancos. Nós não sabemos da nossa verdadeira história.

Malcolm precisa ser lembrado porque o racismo nunca deixa de ser agressivo, ele se molda apenas às situações. Mudam os tempos, muda a forma do racismo agir, mas ele nunca é menos agressivo e recorrente.

No clipe de “Oitavo Anjo” eu apareço lendo a autobiografia do Malcolm, porque de fato eu a li dentro da cadeia 7 vezes. Foi importante pra mim, fortaleceu meu espírito e a minha mente, me estruturou como um vencedor, porque ele era um vencedor. Eu entendi ali que eu devia ser um negro inteligente, porque o sistema não quer que sejamos inteligentes e informados.
E é isso que o rap, ao citar Malcolm, sempre quis passar pros pretos e pra periferia: você precisa ser inteligente, que você precisa agir com inteligência e como um vencedor.

Diomédes Chinaski

Malcolm é especial por vários motivos, mas fazendo um recorte do que mais me marca em Malcolm, é o fato de como a leitura pode transformar as pessoas e, consequentemente, o mundo. Ele passou de cafetão a mártir e pensador, e influenciou positivamente toda uma geração. Espero que essa leitura salve minha vida também, e que eu possa, assim como ele, ser mais do que um rapper para a minha geração.

Jairo Pereira, do Aláfia

Conheci a história de Malcolm X em 1991, pela literatura, e em 94, através do filme biográfico de Spike Lee. Foi quando me tornei politicamente preto. Compreender sua trajetória nos coloca diante do racismo como vencedores. Ele nos ensina que somos fortes, restaura nossa autoestima e nos prepara para o combate de forma consciente. Nos restitui um orgulho abafado pela violência racista e nos joga como protagonistas de nossa história.

DJ Nyack

A importância de Malcolm X na luta social é tão imensa que refletiu em vários lugares do mundo, inclusive aqui no Brasil. Vemos o legado dele em movimentos como o Black Lives Matter e tantos outros. Na cultura hip hop ele foi como um dos professores, da mesma forma que Martin Luther King, Angela Davis e Rosa Parks, que educaram uma geração de jovens negros daquela época, fazendo-os sentir a necessidade de educar gerações futuras, transmitindo o que aprenderam com toda a luta liderada por essas pessoas. Através da música, através da cultura hip hop. Caso não existisse o hip hop, talvez eu nem saberia quem foi Malcolm X, e se nao existisse um Malcolm X, talvez o hip hop não teria esse poder de transformação que salvou vários pretos ao redor do mundo, incluindo eu.

Kayuá

Conheci Malcolm quando fui conhecer mais sobre a minha cultura em outros países, os ícones da nossa cultura, e eu me identifico com ele pela agressividade que ele tinha ao expor as suas opiniões e defender os nossos direitos. Um cara que era o malandrão das ruas e passou a ser um orador e um ícone. Por meio da informação ele se moldou, percebeu que era importante que a luta acontecesse e passou a influenciar pessoas. Ele era forte na palavra, e a gente lida com as palavras, o rap também trabalha com palavras, então é inevitável a identificação.

Heli Brown

Para mim o Malcolm X foi um dos maiores defensores dos direitos dos negros. Ele lutou numa época muito tensa, em que essa questão do nacionalismo, dos direitos dos negros, do racismo, estava muito foda, muito pegado no mundo, com mais força nos Estados Unidos. E ele veio ali de uma forma mais contundente. Acredito que ele tenha inspirado vários outros movimentos. Gosto dele particularmente pelo seu trato com a questão, batendo de frente. Porque Martin Luther King também foi um cara muito importante, só que tem essa diferença: o Malcolm X era contundente. Se precisasse ir armado pras ruas, ele ia. Do jeito que os negros estavam morrendo e sendo tratados na época, realmente foi preciso uma atitude emergencial, brusca. E Malcolm estava disposto a tudo isso, a bater de frente com polícia, com todo mundo. Acho que ele foi um dos caras mais foda da história, e influencia até hoje. O legado que ele deixou pra nós é que é isso: de repente um moleque morre na nossa quebrada, e a gente não pode ficar de chapéu, porque estamos vivendo uma guerra civil não declarada no Brasil, em São Paulo.

As estatísticas estão aí na cara pra quem quiser ver, é só pesquisar um pouquinho. Tantas pessoas morrendo, não só aqui, mas no mundo inteiro. O legado dele é que a gente tem que lutar mesmo, agir de alguma forma contra esse apartheid que ainda existe velado. Lutar, botar a cara, não pode permanecer calado. Essa é a mensagem dele. A realidade do negro é dura, porém temos que lutar e se espelhar em caras como Malcolm X. Ele viverá pra sempre. Enquanto um negro estiver sendo oprimido em alguma quebrada, no trabalho, na rua, nas situações mais simples da vida, ele será lembrado. Acho isso muito foda, por isso que admiro pra caralho. A biografia dele foi um dos best sellers mais importantes do século 21, as ideias dele vão perdurar muito. Acredito que está mudando muita coisa, mas a gente ainda precisa caminhar muito em relação a essa questão de preconceito, racismo e apartheid velado na nossa sociedade.

Nego E

Resumir a história de Malcolm X, como se ele fosse apenas a favor da violência como autodefesa, é algo muito simplista, além de uma ideia rasa. Ao considerar o fato de um homem negro ter que  lidar com as consequências de uma família cujo pai fora assassinado, a mãe passou por diversas dificuldades por ter sido violentada, sendo obrigada a cuidar sozinha de oito filhos até o seu limite, além de passar pela negação constante do direito de “ser alguém” ou pelo julgamento de representar um problema para a sociedade padrão, a violência é apenas um mínimo reflexo em Malcolm X. As ideias dele nos fazem questionar, perguntar os motivos pelos quais, ainda em 2017, 52 anos após a sua morte, quem me procura para fazer uma matéria sobre ele é um jornalista branco. Fazem entender que ser ativista vai além de frases bem elaboradas nas redes sociais ou de um tiro disparado.

MC Soffia

Nós amamos Malcom X, ele é alguém que representa muito em nossas vidas. Malcom teve e ainda tem muita importância para o movimento hip hop, pois era um líder da luta contra o racismo, e até hoje estamos em busca de vitória, nos fortalecendo através do seu discurso.

Todos os seus ensinamentos são base para o rap, pois também é um movimento de luta e resistência, de quebrar barreiras, conhecer sua história e nunca abaixar a cabeça para o racismo. É sem dúvida uma das nossas grandes influências.

Rincon Sapiência

Malcolm X tem uma importância muito grande dentro da cultura hip hop, dentro das manifestações em pról do povo preto. Quem fazia uma atuação paralela com Malcolm X era Martin Luther King, e ele era um cara articulado, conseguia na prática fazer suas reivindicações acontecerem e era um cara pacífico, mas o Malcolm X trazia o contraponto algo que é necessário quando se fala de protestar, de reinvindicar direitos, que é a acidez, o ataque mesmo, aquele negócio de ser “pocas”, de falar sem papas na língua e ter uma acidez no discurso. Então, quando o rap atua dessa forma nas mensagens de protesto em pról do povo preto e dos menos favorecidos, todo esse teor “agressivo” acho que parte do estilo Malcolm X de atuar. A oratória dele era muito boa. Enfim, eu acho que ele só não rimava numa música assim, mas ele tinha todo o estilo de um mestre de cerimônia de rap mesmo, a marra, no bom sentido. Acho que toda essa escola de rap protesto vem do estilo de ser do Malcolm X.

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