Vida e obra de James Baldwin

Tocado pelo gênio da linguagem, romancista e intelectual negro americano passou a vida em lutas, internas e externas, contra o racismo e a homofobia; o discurso, atingindo a essência do problema, foi seu grande legado

Por Gilberto G. Pereira no Jornal Opção

James Baldwin (1924-1987), junto aos monumentos de Shakespeare e John Milton, no Albert Memorial, Kensington Gardens, em Londres: “Ele não era um ‘escritor negro’, era um escritor

James Baldwin nasceu em um hospital do Harlem, em Nova York, em 2 de agosto de 1924. Veio ao mundo tão raquítico e pequeno, respirando mal, que o médico afirmou que não passaria dos cinco anos. Filho de pai que nunca conheceu, vivia em ambiente de miséria com oito irmãos.

Alimentava-se apenas de carne enlatada a semana toda, comprada fiado na mercearia de um velho judeu (parte da história dos judeus e dos negros nos EUA é uma história de cooperação): “carne enlatada frita, cozida, assada, misturada com batatas e pão de milho ou arroz”, quando havia.

Por não ter um físico que impusesse algum respeito, sofria todo tipo de bullying na escola. Mas James Baldwin sobreviveu. Cresceu na efervescência da cultura negra, e viveu sua infância no auge da Renascença do Harlem, liderada pelo gênio de Alain Lock, além dos eventos religiosos da igreja pentecostal negra, onde seu padrasto, David Baldwin, era pastor (pastor negro nos anos 20 e 30 nos EUA não tem ligação sinonímia com pastor brasileiro de tempo nenhum).

Na vida adulta e produtiva, viveu os tempos de violência extrema contra os negros, da década de 1960, testemunhando os assassinatos de seus amigos Medgar Evers, Martin Luther King e Malcolm X, senhores de uma verve semelhante.

Em “James Baldwin: a Bio­graphy” (Alfred A. Knopf, 1994, New York, 446 páginas), inédito no Brasil, seu amigo e biógrafo David Leeming narra a trajetória intelectual desse romancista, ensaísta, dramaturgo e ativista, um dos mais brilhantes de seu tempo, e analisa a complexidade de seu caráter.

“Ele era altamente complexo, e centrado, o mais intensamente sério que já conheci, e ao mesmo tempo era um homem que sabia rir das coisas, e sabia fazer as pessoas rirem também”, diz Leeming.

Segundo o biógrafo, seu amigo desde 1961, Baldwin “era solitário e extremamente vulnerável, a tal ponto de se tornar excessivamente defensivo, à beira da paranoia.” Ao perseguir o amor e a aceitação, Baldwin esbanjava dinheiro e tempo, e às vezes magoava as pessoas (contraditoriamente, “amigos” que precisavam de dinheiro ou de um pouco do seu tempo chegavam aos montes a sua casa na Rua Horácio, no Harlem).

“Como muitas pessoas, Baldwin era um homem com neuroses evidentes. Não era um santo, nunca foi psicologicamente ou emocionalmente estável. Mas era um profeta”, diz Leeming. “Ele sabia que a combinação de sua herança africana, seu talento divino com as palavras e sua linhagem incógnita misturada a sua homossexualidade tornaram inevitável que ele fosse um outsider, um estranho condenado como Jonas a pregar e converter, enquanto o que ele queria mesmo era simplesmente viver a vida.”

Modelos

Baldwin via o padrasto como pai, mas insistia na ideia de filho ilegítimo do Ocidente como todos os negros da diáspora. Estava convencido de que sua missão no mundo era salvar os outros por meio da palavra. A história de Baldwin, sua obra, seu modo de pensar, inaugura uma corrente de resistência contra o racismo muito importante para os movimentos da consciência negra em qualquer lugar nas Américas da Diáspora.

Foi amigo de quase todo mundo de seu tempo, incluindo muitos artistas brancos, como as escritoras Mary McCarthy e Carson MucCullers. O próprio Leeming e um dos mais importantes mentores de Baldwin na juventude, Kenneth Clark, eram brancos.

Até os seis anos, seu padrasto, vítima do racismo como todo negro, enchia sua cabeça de vitupérios contra os brancos, acusando-os de todas as desgraças. Reverendo David foi um modelo negativo de pai negro. Falava que Baldwin era feio, e ria dos olhos esbugalhados do menino. Só mais tarde, o escritor entenderia que o padrasto projetava suas frustrações, e compreendeu que a feiura era um juízo de valor e, como juízo de valor, poderia ser transformada em algo positivo.

Por outro lado, muitas mulheres foram fundamentais em sua vida, como a própria mãe, que era uma espécie de escudo natural do ódio destilado pelo padrasto, e a avó materna. Segundo Leeming, o espírito combativo de Baldwin passa pelo contato que teve com o relato íntimo da escravidão com sua avó, que fora escrava.

Baldwin também teve acesso à cultura erudita e ao movimento caloroso e profundo do Harlem, o contato com grandes poetas e romancistas negros. Quando fazia a quinta série, perceberam que ele tinha talento para a pesquisa e para a escrita. Lia sem parar “Cabana do Pai Tomás”, de Harriet Beecher Stowe. Ao descobrir Charles Di­ckens, em “Um Conto de Duas Cidades”, o mundo ganhou uma dimensão incomensurável, e os professores o incentivaram a frequentar a Biblioteca Pública do Harlem.

Foi a descoberta de um novo mundo. Passou a ler com voracidade. Foi nessa época, quando tinha dez anos, que entrou um personagem fundamental em sua vida.

Massacrado por ser feio e preto, por ser raquítico, pobre, indefeso e afeminado, o garoto Baldwin teve no meio do caminho uma professora que olhou pra ele com outros olhos, os olhos de amor e atenção que só algumas professoras fundamentais são capazes de exercer, Orilla Miller, que se tornaria sua amiga até a morte dela em 1984, aos 76 anos.

Baldwin a chamava de Bill Miller. Era branca, jovem e bonita. Ajudou-o a se construir como pensador sem a raiz do ódio e com uma aguçada consciência. Por causa dela, Baldwin compreendeu que o racismo não era algo natural nas pessoas brancas, mas um sentimento construído, um problema moral, mais que político. A própria professora era tratada como negra só pelo fato de proteger crianças negras da ação racista da polícia nova-iorquina da época.

Suporte intelectual

Em suas memórias, é total a presença de Bill Miller: “uma jovem professora branca, uma linda mulher, muito importante pra mim, a quem eu amava absolutamente, com o amor de uma criança”, disse. Ela nomeou Baldwin como seu assistente na escola. Compartilharam interesses em comum, como o amor por Dickens.

O convívio com Bill Miller foi imersivo, em que ela “não só compartilhava atividades culturais, mas fazia-o participar das discussões políticas.” Mais tarde, Baldwin lembraria que a amizade com Bill Miller lhe deu “suporte intelectual a sua resistência instintiva contra a opressão que ele já conhecia de antemão.” Ela ensinou a ele que cultura e educação eram seus direitos adquiridos ao nascer.

Aos 13 anos, Baldwin ainda tinha medos que em outros garotos negros da sua idade já não existiam mais. A passagem de duas linhas do livro de Leeming mostra o quanto a realidade do pobre e, especialmente, do negro é vergonhosamente parecida em qualquer lugar, pela pobreza, pela discriminação, pela opressão.

Nessa idade, certa vez, Baldwin ficou com medo dos cavalos manobrados pela polícia numa manifestação de 1º de Maio, em Nova York. Leeming então diz: “A polícia manobrando cavalos pode ser uma visão assustadora para crianças brancas. Para uma criança negra do Harlem, de quem a polícia é um inimigo natural, é muito diferente.” Bill Miller o ajudou a superar esse medo.

O livro de Leeming é o que podemos chamar de biografia intelectual, tanto é que o autor fala mais de Bill Miller do que da mãe do escritor. Ele dedica um capítulo inteiro à professora, e outro sobre o livro “The Devil Finds Work” (“O diabo arranja emprego”, em tradução livre), de Baldwin, onde a presença dela é constante.

Já a mãe do escritor, Emma Berdis Jones, só aparece em citações esparsas: “Ele não escreveu nem falou muito a respeito da mãe, mas quando o fazia era com um sentimento profundo de admiração”, diz o biógrafo. Em comparação metafórica, o padrasto de Baldwin era o arquétipo da vítima do racismo como uma doença. E a mãe era a incorporação do antídoto nutriente dessa enfermidade.

Nos primeiros capítulos da biografia, Leeming traça os anos iniciais e a formação de Baldwin, o aprendizado com Miller e a ida para o Ensino Médio, na Frederick Douglas Junior High School, em 1935, no Harlem, onde aprendeu a correlacionar sua capacidade verbal com a luta consciente contra o racismo, contra a homofobia e pelos direitos civis.

Nessa ocasião, Baldwin passou a frequentar a Biblioteca Pública de Manhattan, da 5ª Avenida com a Rua 42, e lá também devorou tudo que pôde. Foi quando começou a seguir os intelectuais negros como Countee Cullen. Também foi quando seu padrasto cresceu o olho em sua verve e o recrutou para pregar na igreja. Aos 13, Baldwin era um tipo raquítico fisicamente e grandioso verbalmente de pastor.

O autor

Já adulto e engajado na intelectualidade nova-iorquina, escreveu seu primeiro grande sucesso, o romance de formação “Go Tell It on the Mountain” (“Vá à montanha para falar”, em tradução livre), de 1953. O título faz uma leve alusão ao bíblico “Sermão da Montanha”, mas está citando diretamente um spiritual (hino) do século 19, de entonação alegre, que requisita a alguém o anúncio do nascimento de Cristo. “Go tell it on the mountain that Jesus Christ is born” (“Vá e diga da montanha que Jesus Cristo nasceu”).

Para escrever “Go Tell It”, Baldwin se distanciou da exortação de Harriet Beecher Stowe e do pensamento marxista de Richard Wright (que lutava contra o racismo). Segundo ele, estes autores “ignoravam o que era a base necessária para qualquer ficção realista, ‘uma dinâmica complexa de intergrupos, “aquela profundidade de envolvimento e o reconhecimento inefável de compartilhar experiências”’ sem os quais o autor parece sugerir ‘que a vida do negro não possui nenhuma tradição, nenhum repertório de gestos, nenhuma possibilidade de ritual ou de trocas’.”

Para ele, era ignorância pura. Esses autores não tinham “sensibilidade suficientemente profunda e agressiva para articular toda a tradição do negro” na América, todo seu background de opressão e dor, em meio ao afeto, amizade, sexo, sexualidade e senso de beleza, a luta diária debaixo do chicote do opressor e o exercício da abstração, até chegar ao tempo da liberdade e do descaso do Estado, à música, à bebida, à religião, à fé emprestada daqueles que os escravizaram, ao racismo sempre presente, enquanto a vida tinha de ser vivida (ou não, porque muitos se matavam no meio do caminho).

Baldwin achava que tinha essa sensibilidade. E “Go Tell It” foi a primeira resposta pungente. É a história de um garoto negro tendo sua primeira experiência religiosa dentro da igreja pentecostal do Harlem, com espasmos espirituais, um enteado vituperando contra o padrasto, que é pastor e que o chamava constantemente de feio, cuja feiura era fruto do demônio.

Enquanto isso, a narrativa traz um fluxo de flashbacks que vão ao período da escravidão e cavam os fósseis da memória dos negros na América, confrontando passado e presente, enquanto o garoto, pela palavra, tenta expurgar sua dor e elevar-se a si mesmo à montanha.

Toni Morrison, Prêmio Nobel de Literatura de 1993, e Alice Walker, autora de sucessos conhecidos no Brasil como “A Cor Púrpura”, souberam aproveitar essa nova diretriz aberta tanto por Baldwin como por Ralph Ellison com “Homem Invisível”, publicado em 1952.

Orilla “Bill” Miller (c. 1938), professora e amiga do autor. Deu-lhe “suporte intelectual a sua resistência instintiva contra a opressão”. Foto Jornal Opção

Profecia e testemunho

O combate que Baldwin combatia era diuturno, e de ambos os lados, de dentro e de fora dele mesmo. Quando publicou “Go Tell It”, um romance do Harlem, queriam que ele publicasse outro com a mesma ambientação. Mas ele negou, e escreveu uma peça de teatro do Harlem, “Notes of a Native Son”. Os romances seguintes não seriam do Harlem necessariamente.

Baldwin resistia aos rótulos. “Ele não era um escritor panfletário ou um ‘escritor negro’, ele era um escritor’.” Ele se importava com a voz, e não com o engajamento, embora sua voz, rebelde e lírica, furiosa e altissonante, atraísse os desígnios do que ele chamou de profecia e testemunho. E o romance era um veículo apropriado para essa missão, tanto quanto o ensaio.

“Em cada um de seus romances, há traços evidentes de eventos de sua vida que são colocados na trama como base para explorações ficcionais e, às vezes, quase descrições alegóricas de sua filosofia de vida”, diz Leeming. Era um método. Desse modo, há uma conexão entre os personagens de cada romance. “Cada um deles é uma vítima, um cadáver simbólico no centro do mundo do romance e da sociedade maior simbolizada por esse mundo”, diz Leeming.

Seus romances já eram um sinal de sua capacidade articuladora do mundo e evidenciadora do racismo, mas quando vieram ensaios como “The Discovery of What it Means to Be an American” (“A descoberta do significado de ser americano”, em tradução livre), de 1959, e “Nobody Knows My Name” (“Ninguém sabe meu nome”), de 1961, Baldwin surgiu com força como “testemunha de todo o di­le­ma do que significava ser americano no contexto daquelas condições.”

Foi o período em que surgiram com força – nos protestos contra a violência do ra­cismo – seus amigos Me­dgar Evers, mor­to em 1963, aos 37 anos, Mal­colm X, morto em 1965, aos 39 anos, e Mar­tim Lu­ther King, morto em 1968, aos 39 anos (assassinado há exatos 50 anos, portanto).

Alma mater

A capacidade articulatória de Baldwin pode ser lida em seus ensaios e vista no documentário de 2016 “Eu Não Sou Seu Negro”, de Raoul Peck, baseado no roteiro que Baldwin escreveu para um filme que ele nunca fez, intitulado “Remember This House”, sobre os assassinatos dos três amigos.

Em 1953, quando Baldwin publicou “Go Tell It”, ele já estava em Paris, onde morou por alguns anos, depois voltou para Nova York. Mas quando já era famoso e sendo reconhecido nas ruas, o combate à homofobia e ao racismo o cansaram. Com os amigos sendo assassinados, ele sentiu medo de ser o próximo e, em 1970, mudou-se para Saint-Paul-de-Vence, onde viveu até morrer, em 1987, vítima de câncer.

No Brasil, seus livros estão esgotados. Mas nos sebos podem se encontrar títulos importantes como “Pelas Praças Não Terás Nome”, “Da Próxima Vez, o Fogo – Racismo nos EUA”, “Giovanni” e “Numa Terra Estranha”. Os direitos autorais destes dois últimos, mais o de “If Beale Street Could Talk”, foram comprados pela Editora Companhia das Letras. Até agora, no entanto, nenhum ganhou nova publicação.

Baldwin não fez faculdade. Em compensação, a faculdade não fez falta a ele. Tornou-se, pela força viva e sensível da inteligência, uma das mentes mais brilhantes e fecundas de sua geração. A Biblioteca Pública do Harlem foi sua alma mater. Morreu na França, mas foi enterrado em Nova York, no cemitério Ferncliff, no condado de Westchester, a cerca de 20 quilômetros do Harlem. Sua mãe faleceu em 1999, aos 99 anos, e está enterrada ao lado do filho.

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