Jéssica Ellen canta a Umbanda e celebra ancestralidade em ‘Macumbeira’: ‘Conexão espiritual’

Jéssica Ellen esperou o Dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro , para brindar não só cariocas, mas brasileiros e brasileiras com um trabalho sensível e que serve de acalento em dias tão duros.

A cantora e atriz acaba de lançar ‘Macumbeira’ , segundo álbum de sua carreira. O disco é um ode à Umbanda , tão brasileira quanto a própria festa de São Sebastião, que para também pode ser sincretizado com o Orixá Oxóssi – guardião das matas e florestas.

Nomeada pela revista Forbes como uma das brasileiras mais criativas com menos de 30 anos , Jéssica Ellen mostra que transita por diversas áreas. E com talento. Para ficarmos no tema de seu novo lançamento, é como se a jovem, que também é atriz e está fazendo sucesso na novela ‘Amor de Mãe’ , se inspira em características de Logunedé – Orixá conhecido por misturar características femininas e masculinas – para mostrar, de uma vez por todas, que mulheres negras podem ser o que quiserem.

“Acho que as mulheres negras têm muitos desafios. Por serem mulheres e por serem mulheres negras. O protagonismo é algo que a gente exige diariamente e o fato da gente se manter viva, com saúde, saudáveis, firmes, já é uma resistência. por si só uma vitória, uma luta. São muitos atravessamentos diários que a gente tem que lidar “ , diz Jéssica em conversa por telefone com o Hypeness.

Jéssica faz homenagem às pombagiras na faixa de abertura do álbum (Foto: Gabriella Maria)

Quem acompanha Jéssica Ellen nas redes sociais deve ter sentido a ansiedade e alegria de ver o nascimento de ‘Macumbeira’. Ativa e em constante contato com seus fãs, um artista entrou em 2020 representando uma Pombagira em um belíssimo ensaio fotográfico feito por Gabriella Maria.

A Pombagira, que representa também a liberdade feminina em uma sociedade que usa o machismo como um método sistêmico de opressão, é homenageada na faixa de abertura de ‘Macumbeira’, ‘Pout Pourri de Pombagira’.

Ao Hypeness, Jéssica explica que ‘Macumbeira’ nasce para celebrar a Umbanda, mas, precisamente, a importância de seu falecido avô em apresentar a religião para sua família.

A minha relação com a Umbanda é muito de uma memória afetiva. O meu falecido avô, o pai da minha mãe, era umbandista. Eu tenho muita memória de pegar doce de Cosme e Damião quando era criança. Tenho uma memória muito afetiva. E o fato de eu ter tido esse primeiro contato com a Umbanda quando era mais nova, acho que fez com que eu entendesse que o caminho espiritual faz parte da vida. Não à toa eu, depois de muito tempo, me iniciei no Candomblé. Mas eu não vejo necessariamente uma ligação direta. Até porque, quando eu me iniciei no Candomblé através de uma amiga no curso de dança, tinha mais de 10 anos que meu avô era falecido. Então, não foi uma ligação direta, sabe. Mas, a ligação da minha família com a Umbanda e a espiritualidade vem por conta, sim, do meu falecido avô.

Cantar o axé
Jéssica Ellen faz parte de um panteão de cantoras e artistas – mulheres negras brasileiras que cantam para abrir os caminhos das religiões negras brasileiras. É o caso de Fabiana Cozza, Maria Bethânia, a saudosa Serena Assumpção, Mariene de Castro, entre outras.

São vozes necessárias em um país que insiste em fechar os olhos para seu passado. O Candomblé, que cria suas raízes na Bahia com a chegada de escravizados sequestrados de seus países em África, ainda é alvo constante de intolerância religiosa. Assunto incômodo, mas que precisa ser combatido para que a fé nos orixás, lindamente cantada por Jéssica Ellen, possa ser cultuada com liberdade.

O racismo religioso segue em franco crescimento no Brasil. Como bem mostrou reportagem do Brasil de Fato, o número de denúncias ligadas à intolerância religiosa aumentaram 41,2% no primeiro semestre de 2020 em comparação com o mesmo período de 2019. Lembrando que os casos são reportados à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH).

A própria Jéssica sofreu com a intolerância, muitas vezes fruto do desconhecimento das pessoas com o diferente, nas suas redes sociais. Perdeu seguidores depois de postar fotos celebrando os Orixás, mas recuperou um número ainda maior depois da divulgação de ‘Macumbeira’.

“O fato de eu ter lançado o CD e as fotos do ensaio fotográfico, surtiu um efeito de curiosidade nas pessoas. Muita gente ficava assim, ‘caramba, qual vai ser a próxima entidade, qual vai ser a foto a ser postada?’. Acho que teve um movimento engraçado e curioso também, sabe. Teve muita resistência no início, só que hoje, depois do lançamento, aumentou também [o número de seguidores]. Aumentou acho que em dois mil seguidores. Tinham 65 mil, aí diminuiu para 63 mil e agora está com 67 mil”.

A cantora e atriz aproveita para refletir sobre a relação das pessoas com as redes sociais.

Isso mostra também o quanto a internet é volátil e tem toda essa instabilidade. E que a gente não precisa levar tudo tão a sério, a ferro e fogo. Por que, às vezes na internet, as pessoas entram em discussões que muitas vezes não vão levar a nada. Eu acho que a internet é um lugar maravilhoso pra gente compartilhar os nossos trabalhos, nossas ideias. Mas entendendo que nem todo mundo vai concordar, entendendo que o mundo é muito diverso. Nem sempre vou estar certa. A gente nunca tá certa ou sempre com a razão. Acho que a internet é um lugar que pode, sim, ser um espaço de estabelecimento de diálogos saudáveis. Para conversarmos sobre essa resistência, os preconceitos, mas de uma maneira educada e menos enérgica. É o que eu espero que a gente consiga fazer em algum momento.

Parte de uma geração que segue seus caminhos a partir de uma encruzilhada, Jéssica Ellen não se encaixa em estereótipos, nem nos que insistem em colocar mulheres negras em determinados espaços. Plural, ela conta ao Hypeness que canta o axé por pura emoção. Amor e devoção pelo Orixá.

As pessoas me fazem muito essa pergunta da importância de cantar sobre as religiões, sobre esse assunto. Alguns amigos, inclusive, me falam ‘sua voz é tão linda, você podia cantar sobre outros ritmos, assuntos’. E eu também entendo isso como um elogio, mas eu não vejo, necessariamente, como uma bandeira, sabe? Que precisa ser levantada. Vejo mais sobre algo que eu quero falar no momento, algo que toca meu coração quando eu ouço um ponto. Quando eu ouço uma cantiga de Orixá. Aquilo me emociona muito, então eu quero cantar o que toca o meu coração. É mais por esse desejo de fazer o que gosta. De cantar o que me atravessa.

Quem se inspira, também inspira. É o caso de ‘Macumbeira’. O ensaio fotográfico estrelado por Jéssica Ellen para divulgar o disco terminou com uma série de fotos homenageando os Ibejis ou Erês – que representam as crianças na Umbanda e Candomblé.

E como dizem os experientes babalorixás e yalorixás (pais e mães de santo em iorubá), o futuro das religiões negras está diretamente ligado às crianças. Assim como o futuro da sociedade. E os macumbeirinhos e macumbeirinhas, como será que receberam ‘Macumbeira’? Jéssica imagina e fala sobre o retorno dos fãs.

Cara, eu acho que os macumbeirinhos e as macumbeirinhas estão se sentindo muito felizes. Eu tô muito feliz com o retorno das pessoas – de ontem pra hoje, assim, teve uma escuta muito aberta, sabe? De coração mesmo. Também o fato de ontem ter sido feriado de São Sebastião. Já tinha na cidade do Rio toda uma atmosfera de conexão ancestral, conexão com a espiritualidade. Acho que foi uma recepção muito bonita de ver o quanto que as pessoas se emocionaram. Eu repostei nos meus Stories várias marcações de fãs ouvindo as músicas, cantando. Foi bonito de ver toda a rede que se formou.

 

Jéssica Ellen canta com sua irmã, Enjoyce, a faixa ‘Juremeira’ (Foto: Gabriella Maria)

O disco, Ogum e o samba de roda
E o espírito dos Ibejis, homenageados na faixa ‘Ciranda pro Erê’,transitou em vários momentos de ‘Macumbeira’. Jéssica contou com os convidados especiais Zezé Motta, Pretinho da Serrinha e Enjoyce, sua irmã. As duas, aliás, protagonizaram uma série de lives em 2020 cantando músicas de filmes clássicos da Disney.

“Ter gravado com minha irmã foi maravilhoso! A gente se divertiu muito, a gente riu. Não à toa essas risadas aparecem na gravação. A gente riu porque estávamos felizes de estar juntas fazendo um trabalho musical. Um trabalho artístico. E isso acabou entrando no final da música. É uma música que me traz muita alegria quando eu ouço. Foi uma alegria sem fim. Eu, quando encontro a minha irmã, a gente ri o dia inteiro fazendo palhaçada uma pra outra. Foi muito bom. Foi uma delícia, uma brincadeira de criança mesmo. Encontro a minha irmã e parece que a gente vai pra infância. Foi ótimo”, recorda com alegria sobre ‘Juremeira’, cantada em parceria com Enjoyce.

O samba de roda, presente no DNA da Bahia tanto quanto o azeite de dendê e o Candomblé, foi cantado na faixa ‘Malandro Mandigueiro’ – composição de Luiz Antônio Simas e Fred Camacho. Para Jéssica, a música é a representação da “sabedoria de terreiro”.

“‘Malandro Mandigueiro’ é uma música do Fred Camacho com o Luiz Antônio Simas. Uma música que eu acho muito boa, muito linda, que fala sobre isso, sobre a sabedoria de você ser de terreiro. De todos os conhecimentos que se tem. Eu acho que é uma música que fala muito sobre a festividade que representa ser de terreiro, uma pessoa que consome roda de samba. Que tem essa relação com a horizontalidade – na roda de samba tá todo mundo em roda. Todo mundo igual. Eu gosto muito dessas duas faixas, que bom que você gostou e que também tocou você”, explica Jéssica.

A outra canção lembrada por ela é ‘Ogum’. Como o próprio nome já diz, trata-se de uma homenagem ao Orixá dos caminhos, como Jéssica nos explica com maestria e beleza.

Eu gosto muito de Ogum porque é um Orixá, uma entidade que toma conta do caminho. Enquanto Exú abre os caminhos e permite que você adentre os espaços, Ogum é quem mantém você protegido na caminhada. Então, é um Orixá que eu tenho muita paixão e um carinho muito grande. E uma relação de muita devoção. Meu falecido avô tinha vários vinis com muitos pontos de Ogum – muitos inclusive que eu regravei no disco. Eu tenho um carinho muito grande por esse Orixá.

‘Macumbeira’ é um suco de um Brasil que resiste. Mais do que isso, é sobre um país que vai existir, para sempre – com sua cultura, sua fé, tristezas, a raiva e, sobretudo, a devoção. Crença para que a diversidade seja, finalmente, o ponto de partida de uma sociedade feliz. Felicidade esta impossível de se concretizar sem as mulheres negras. Negras como Jéssica, Zezé Motta, Enjoyce e tantas outras.

O protagonismo não é dado de mãos beijadas, mas é sempre muito bonito ver quando mulheres negras se empoderam da sua missão. Dos seus posicionamentos. Existem muitas mulheres que eu me inspiro, que eu gosto e me identifico, mas uma que eu sempre falo é a Beyoncé. Mesmo sendo muito diferente do que hoje em dia eu me proponho a cantar. Eu acho ela uma artista muito completa e potente. Os trabalhos dela têm sempre uma pegada da moda, um conceito por trás. Não é só estética, a estética é uma mensagem. Tem a melodia. Ela é empresária, ela é cantora, ela é bailarina, ela é atriz, ela é uma intérprete. Então, ela uma artista que pra mim, na sua potência, na sua totalidade, é a que mais me inspira. E aí, óbvio que ela dentro de um contexto pop norte-americano, eu faço uma tradução, essa adaptação dentro do Brasil, do que eu julgo importante de falar nos meus trabalhos musicais. E enfim, é isso. Acho que ela é a maior inspiração que eu tenho.

‘Macumbeira’ está disponível nas principais plataformas de streaming. Machado!

Ser macumbeira pra mim é manter essa conexão espiritual, essa conexão familiar. A relação com a natureza, a relação com o autocuidado. A saúde espiritual pra mim tem tanta importância quanto a saúde física e mental. Ser macumbeira é isso, cuidar de si, do outro e da natureza. E essa palavra [macumbeira], por muito tempo, foi usada de forma equivocada. Então, não à toa, foi a palavra escolhida para dar nome ao disco, para batizar meu segundo filho. Então, é isso, foi uma tentativa de ressignificar a palavra.

Jessica Ellen valoriza ancestralidade em novo projeto musical (Foto: Gabriella Maria)
Kauê Vieira

Nascido na periferia da zona sul de São Paulo, Kauê Vieira é jornalista desde que se conhece por gente. Apaixonado pela profissão, acumula 10 anos de carreira, com destaque para passagens pela área de cultura. Foi coordenador de comunicação do Projeto Afreaka, idealizou duas edições de um festival promovendo encontros entre Brasil e África contemporânea, além de ter participado da produção de um livro paradidático sobre o ensino de África nas Escolas. Acumula ainda duas passagens pelo Portal Terra. Por fim, ao lado de suas funções no Hypeness, ministra um curso sobre mídia e representatividade e outras coisinhas mais.

Fonte: Por Kauê Vieira, do Hypeness

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