Joe Beasley, ativista: ‘Em Salvador, acontece um Ferguson por semana’

Militante dos direitos dos negros, o americano de 79 anos, morador de Atlanta, veio ao Rio para participar do programa pela igualdade racial na Coca-Cola Brasil

Por LUCAS ALTINO, do O Globo 

“Cresci numa plantação na Geórgia. Não tínhamos direitos, parecia escravidão. Com a mecanização, nos anos 40, os negros foram para áreas urbanas, muitos para Atlanta. Depois da escola, entrei na Força Aérea, porque não havia empregos. Após 20 anos de serviço, entrei na militância pelos direitos dos negros.”

Conte algo que não sei.

Queremos a igualdade. Mas a verdade é que não é tão fácil. Por exemplo, mesmo numa democracia, Salvador, uma cidade com 80% de negros, nunca teve um prefeito negro. Não faz sentido.

Como você luta pela igualdade atualmente?

Faço trabalho em empresas do mundo inteiro, para que aumentem o engajamento na diversidade racial, com mais oportunidades para negros e implantação de programas de inclusão social.

É um processo demorado?

Sim, há empresas que investem em instituições negras, mas o desafio é fazer com que criem oportunidades, além da doação de dinheiro. O desemprego no Brasil entre negros é muito alto. Alguns anos atrás, estive em Salvador acompanhando a inauguração de uma grande fábrica de automóveis, com cerca de 10 mil funcionários. Visitei o local para saber qual a ocupação dos negros; muitos eram seguranças ou porteiros. Tentei dialogar com o CEO. Até hoje espero as estatísticas oficiais.

Ainda uma herança da escravidão?

O Brasil foi um dos últimos a abolir a escravidão, e não houve reparação até hoje. Só agradeceram pelos 350 anos de trabalho grátis. Mas não queremos ficar em serviços subalternos para sempre. Há dez anos, estive em Recife e, enquanto fazia check-in num hotel, uma mulher me pediu para eu pegar as malas dela. Depois, soube que era uma inglesa que participaria de uma conferência sobre diversidade. Mesmo assim, esse é o pensamento geral.

Muitos aspectos persistem?

Sim, dos EUA não existe voo direto para a capital do Congo, por exemplo. É uma herança colonial, de quando diziam que africanos eram selvagens. É engraçado notar que os belgas estão com medo do terrorismo agora, mas o Rei Leopoldo II, que matou cerca de 10 milhões de congoleses, era um terrorista. Se os europeus quiserem saber mais sobre terrorismo, podem perguntar para seus antepassados.

Acha que a sociedade debate mais o problema hoje. O Oscar acaba de mudar as regras em prol da diversidade.

As pessoas não gostam de ficar sem graça, você fala a verdade e as pessoas ficam envergonhadas. Vivemos na era da informação, todo mundo registra tudo, é maravilhoso.

 

Você demonstra conhecer bastante o Brasil…

Eu me vejo como um cidadão global. Essa é a minha terceira vez no Rio. A primeira foi há 12 anos. Conheço bastante a Bahia também. Em Salvador acontece um “Ferguson” toda semana. A polícia precisa mudar. O Brasil é muito similar aos EUA, nesse sentido.

O Rio mudou desde então?

Sim, mas a evolução costuma ser lenta. Há 12 anos eu não via negros nas empresas. Ainda não está bom, mas estão indo na direção certa. Na manhã que cheguei, fui tomar café no hotel e parecia que eu estava na época da escravidão, pois só havia brancos comendo e os negros servindo.

Imaginava um dia ver um presidente negros nos EUA?

Nunca, é fantástico. As coisas melhoraram, mas penso que se você está num grande barco que esteve numa direção errada por 200 anos, é difícil assumir como capitão e mudar a direção para o lado certo.

 

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