Léo Lins, Fabio Porchat e o antirracismo de conveniência.

A repercussão de setores da grande mídia acerca da condenação do comediante Léo Lins em ter removido do Youtube, show de piadas de cunho racista e machista, foi muito maior do que o repúdio a sua prática artística corriqueira de gerar humor em detrimento de grupos socialmente marginalizados e discriminados. Sempre empunhando a bandeira da “liberdade de expressão” e de que a arte, em especial o humor, não possuí limites. Sendo que não se discute esse fato, mas sim de você ser responsabilizado e assumir aquilo que de fato você expressa através de seu exercício artístico de liberdade, e ter ciência das consequências sobre esses atos.

O que nos possibilita desenvolvermos críticas a essa argumentativa falha não em conceito, mas em sua lógica torpe e seletiva, por só levar em consideração como irrestrito, o direito a expressão do artista/ofensor, mas não trata em equivalência o direito ao repúdio do receptor/ofendido. Pois na prática, compreende que através da “liberdade de expressão artística” tudo pode e se faz permitir, ou relevar, até mesmo o racismo. Cabendo ao público que se sentir incomodado nem mesmo emitir opinião em contrário, acabando por ser rotulada enquanto “mimimi”, “vitimismo”, “racismo reverso”, “arbitrariedade” … Enfim, se condena e se combate não as manifestações de racismos e demais formas de preconceitos que se dão camufladas, e protegidas, sobre o escudo de “brincadeiras”, “piadas”, “coisas bobas”. Mas se contesta as opiniões que se dão em contrário a essas ocorrências.

O que muito nos revela sobre nossa alma enquanto sociedade sempre afável com os poderosos, piedosa e complacente aos excessos e absurdos de suas elites ou daqueles que a elas servem de bom grado. Mas alienada e indiferente, quando não implacável e impiedosa ante as dores e revoltas dos ofendidos, dos vitimados por essas práticas nefastas típicas de nossa cordialidade falsamente cidadã. 

Que fique evidente não estar havendo aqui uma defesa por qualquer ato autoritário ou ditatorial, mas sim uma perplexidade em buscar compreender como se defende abertamente o “direito em ofender” a qualquer um – o que não existe, ledo engano, em nossa constituição – em nome de uma liberdade total de expressão. Como se essa forma de carta (literalmente) branca a tudo permitisse ou possibilitasse aos seus portadores, tal qual Léo Lins e outros que se apregoam comediantes impiedosos em relação a qualquer tabu ou dogma, arredios a qualquer forma de respeito as autoridades, mas que só circulam e se apresentam para um mesmo tipo de público, tão conservador e elitistas quanto eles. Sempre com esquetes humorísticos, com piadas cruéis, violentas, ofensivas, com os historicamente discriminados e socialmente minorizados. Mas que artisticamente se mostram silenciosos e omissos na produção de críticas sociais, da destruição de imagens e símbolos relacionados as nossas populações mais abastadas economicamente e mais poderosas socialmente. Sou impiedoso e intolerante com os negros, pobres, indígenas, mulheres, população LGBTQI+, adeptos de religiões não cristãs. Enquanto sou dócil e benevolente ante aqueles aos quais pertenço – ou represento – social e racialmente. E é esse recorte racista e classista, e de gênero, que envolve a todo um conjunto de piadas que Lins vem promovendo ao longo de anos. Não é um caso recente, de “última moda”, mas que se repete de maneira contumaz enquanto exemplo do “racismo recreativo” que se revela basilar de boa parte do humorismo brasileiro. Humor racialmente e classista bem definido, com alvos e intenções bem-postos.

E quando, por ação política movida por entidades negras, a Justiça intercede para que essas piadas racistas não sejam mais praticadas enquanto manifestações públicas, pelo teor racista, portanto criminoso, que elas simbolizam. Tivemos a grita de artistas – jornalistas e políticos – indignados e preocupados com o que consideram uma arbitrariedade realizada pela justiça brasileira! Sempre partindo de pontuações que sinalizam “não serem racistas “, mas – e sempre há, um, mas – são todos “contra qualquer tipo de censura”. Argumentações assim foram expressos sem nenhuma vergonha, colocando que a liberdade de expressão está acima de qualquer valor ou situação. Inclusive, como nesse caso, se for uma manifestação de cunho racista. Mas no Brasil, em que se fazer humor com a dor alheia, com o sofrimento e horrores dos “outros” era estimulado até a pouco tempo atrás pelo antigo presidente do país, como exemplo de nosso verdadeiro jeito de ser “brincalhão” com qualquer um, tal tipo de humorista ter sucesso e tantos seguidores não é surpresa. Não chega a ser nem mesmo surpreendente, a defesa e solidariedade prestada ao artista por pessoas que se postulam pertencentes a causa antirracista, como a realizada pelo humorista Fabio Porchat. Pois uma coisa é você ser moralmente “simpático a causa”, “solidário a luta” outra é na prática ser antirracista de fato e não só quando lhe é conveniente. Ou quando lhe é simbolicamente interessante…

Em toda situação de conflito, de tensionamento social em que o racismo se faz combatido não enquanto abstração, mas por ações práticas personificadas, em fatos que envolvem figuras públicas, ocorre uma defesa sistêmica não dos agentes promovedores das ações nefastas, mas daqueles que se indignam contra ela. São falas e mais falas defendendo o “bom senso”, a “ponderação”, “o cuidado em não se deixar guiar pelo radicalismo”, “a importância de não se render ao revanchismo”… Uma ação de proteção de classe e de raça, numa sociedade como a nossa estruturada em alicerces racistas e socialmente discriminatórios, que acaba por sempre ser direcionada a proteção aos que por aqui sempre foram na prática, mais cidadãos do que os outros.

Uma perpetuação de privilégios que protege o direito a ser racista destas pessoas, em detrimento a tudo que se manifeste em contrário a isso. Realidade corriqueira que acaba por potencializar a violência já brutal do ato racista – de qualquer ato discriminatório em si – ao garantir uma impunidade ao praticante de tal crime e a culpabilidade de suas vítimas. Que são moralmente imputadas a serem piedosas e ponderadas com quem age como algoz em relação a elas, e atacadas impiedosamente quando não aceitam seguir essas regras não oficializadas, mas informalmente estabelecidas como padrões balizadores do conjunto de nossas relações sociais cotidianas. 

Você pode e será vítima de racismo, conforme-se a isso, não reclame por demais, mostre-se superiora a isso, perdoe a quem lhe atente e siga com sua vida! Essa é a lógica de comportamento que se espera a toda pessoa submetida a essa experiência horrenda e que todas as falas, pensamentos e posturas, como as do Fábio Porchat, referendam.

Fora a canalhice suprema de tal postura, nas entrelinhas conter uma discursiva de querer direcionar como devem se dar ações políticas e reivindicatórias dos movimentos negros e entidades/organizações antirracistas e pró negritudes nas suas dinâmicas de confrontação ao racismo estrutural brasileiro. Sinalizando assim quais ações antirracistas são válidas de fato, quais merecem ser divulgadas, apoiadas, ratificadas. Sendo que por coincidência, sempre são inseridas a essa condição de porta-vozes legitimados, por aqueles que se imbuem de uma autoridade que nunca lhes foi dada ou imputada, representações individuais ou coletivas que optam em suavizar nossos pontos de tensões raciais e sociais. Dessa forma almejando continuar a se sentar aos salões da Casa-grande brasileira, mesmo que por vezes como serviçais úteis ou atrações pitorescas – sendo ambos descartáveis – para atestar um verniz de civilidade a uma barbárie de dores e mortes perpetradas a séculos em nossa sociedade.  

E quando ocorrem ações que fogem a esse script de nossa, imposta, normalidade e cordialidade ante todas as nossas mazelas sociais, aparece a figura do “branco amigo e boa praça”, do parceiro de festas e bate-papos, sempre simpático ao extremo. Bem-educado e interessado em sempre aprender mais sobre nossas lutas e a nossa causa, visando continuar a sua desconstrução diária e libertação de todas as formas de preconceitos. Ele se revela como de fato aquilo que ele é, aquilo que ele pensa e defende verdadeiramente que é a manutenção de nossa estrutura de privilégios que sempre beneficia aos seus. Adepto do famoso conceito de “mudar tudo, para não mudar nada”. Aquela pessoa que se diz e se manifesta em redes sociais com discursos, posts e fotos de que “Vidas negras importam”, que diz amar “Racionais MC’s”, que “devora tudo” da Conceição Evaristo, da Djamila Ribeiro e do Silvio Almeida, mas que na hora dos embates práticos, das ações concretas… Sempre repete: “não que eu não concorde, mas…”; “aí vocês já estão sendo muito radicais”; “é muito exagero por uma simples piada”; “vocês são muito complexados”; “nossa, quanta sensibilidade”. Quem não conhece um(a) colega de luta, amigo(a) do peito branco(a) racialmente descontruído(a) e historicamente consciente de seus privilégios que sempre age assim? Quem não conhece um(a) Fabio Porchat para chamar de seu?

Uma coisa é a luta antirracista ser de todos, todas e todes, mas outra bem diferente ela ser direcionada e definida por quem não sente na própria pele, na própria alma, os males que o racismo gera e imputa aos que por ele são estigmatizados e discriminados de geração por geração. Há mais de quatro séculos por estas terras.

A arte, o humor não possuí limites, e pode abordar e problematizar qualquer assunto ou tabu? Concordamos com tal premissa, não é ela, reiteramos que está aqui em questão, essa é uma falsa celeuma. O que se questiona é o limite que o artista inflige quando a sua arte é de fato uma obra ou manifestação racista. E de como ele deve ser responsabilizado por isso! Ou estamos baseados numa lógica de que: “falo o que quero, como quero, e quem não concordar comigo está errado! E não deve se manifestar em contrário!” 

O que nos leva a refletir, provocativamente, se o humor é universal e para todos os públicos, sugiro, e não estou sendo irônico, que Léo Lins faça suas apresentações em espaços como escolas de samba, shows de rap, centros culturais e ONGs localizadas em favelas, comunidades e quebradas. Em terminais de transportes em horário de pico, ou no meio de multidões nas ruas e avenidas das grandes cidades brasileiras. Se o humor é universal e pode falar sobre tudo, a qualquer hora e momento… E pode levar o Fábio Porchat para explicar aos “incultos” o direito em ser racista quando se estiver contando piadas. Garanto que essa experiência e a recepção não será a mesma de eventos em clubes particulares, com público-alvo tão preconceituoso e tacanho quanto das atrações principais. Daquelas pessoas avidas em rir sobre, e das desgraças, daqueles a quem não possuem a mínima empatia ou consideração. Ou só é considerada válida a crítica positiva e que corrobora e esse tipo de performance?  

A branquitude com seu pacto narcisístico de universalismo, de que ela é o centro de tudo que ocorre em uma sociedade, que deve por isso ser acatada sem questionamentos ou enfrentamentos é mais presente do que nunca nessa situação. Ao nível até do racismo não ser negado, mas defendido em seu direito de ser manifestado sem nenhum pudor, acima até mesmo do exercício da lei. E para tal realidade, para o racismo não há, ou não deveria haver, tolerância, compreensão e nem bom senso, mas sim a aplicação imparcial, dura e fria do nosso conjunto de leis. Pois racismo, constitucionalmente, é crime! 

Não existe aqui discussão ou conflito moral, pois há coisas, há fatos que não se teorizam ou ponderam, mas se aceita ou não, se compactua ou não, se é favorável ou não. E esta é uma dessas situações em que não existe área cinza ou dúvidas para ser isento. O que se está posto e colocado é se você é ou não conivente com o racismo, se você é ou não tolerante ao que não pode ser tolerado. Se você é ou não racista de fato, que não possuí coragem de se assumir como tal. Essa é a realidade que está posta, não podendo por isso as organizações negras, serem confrontadas por não aceitarem serem discriminadas. Pois o que deve ser sim, cobrado publicamente é a incoerência dos discursos antirracistas de nossos “colegas de luta” que não se sustentam ante suas práticas. Afinal de contas, que desconstrução é essa que “passa pano” aos racistas e condenam os que se opõem a eles?

Ou na verdade nós estaríamos diante de uma piada tão sofisticada, que só certo publico entende e acha graça? Que só o Léo Lins, Fábio Porchat, além de seu seleto e digníssimo público, entendem? Uma nova variante artística, a do “racismo comédia” que se baseia na tolerância e perdão antecipado ao racismo que você será exposto? Seria isso? 

Que piada de mau gosto! Que piada mais sem graça… 

Nem precisa contar outra!

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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