Letramento sobre questões raciais é fundamental contra as discriminações sofridas por mulheres negras no mercado de trabalho

Projeto de pós-doutorado desenvolvido na USP analisa as desigualdades de oportunidades para a inserção e desenvolvimento profissional das mulheres negras

FONTEJornal da USP, por Antonio Carlos Quinto, arte por Simone Gomes
Desigualdades de oportunidades têm sido historicamente uma realidade no cotidiano das mulheres negras - Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

As disparidades de oportunidades, cargos e salários para as mulheres negras no mercado de trabalho não são recentes e têm sido demonstradas por diversos institutos de pesquisas, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social (ETHOS) e a Organização das Nações Unidas voltada para mulheres (ONU-Mulheres). “As desigualdades de oportunidades no mercado de trabalho, tanto formal quanto informal, têm sido historicamente uma realidade constante no cotidiano das mulheres negras”, afirma a professora Antonia Aparecida Quintão que, recentemente, concluiu seu projeto de pós-doutorado na Faculdade de Economia,  Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP.

Em sua pesquisa intitulada O impacto do racismo para o desenvolvimento profissional de mulheres negras nas organizações de São Paulo, que contou com a supervisão da professora Sílvia Pereira de Castro Casa Nova, Antonia Quintão teve entre seus objetivos aproximar a universidade da sociedade brasileira em uma perspectiva decolonial.

 “Por isso proponho um estudo sobre o racismo, que é o nosso maior dilema, e como ele se estrutura e se consolida no ambiente organizacional”, destaca a docente.

 E, nesse contexto, há outro objetivo: dar voz às mulheres negras inseridas nas organizações, garantindo o seu protagonismo para analisar e avaliar o impacto do racismo na sua vida profissional e social.

Antonia Aparecida Quintão – Foto: Arquivo pessoal

“Considero igualmente fundamental enfrentar o silêncio e a omissão do espaço acadêmico sobre esta temática”, declara a professora Antonia Quintão ao Jornal da USP. Para ela, não é possível que se continue a formar profissionais e a entregar um diploma de graduação para estudantes que nunca tiveram, durante o seu período de formação, qualquer letramento sobre a questão racial e nem mesmo uma disciplina que propusesse um debate ou uma reflexão sobre o racismo, que pauta as relações sociais em um país de maioria negra. Afinal, segundo ela, “o racismo se manifesta no nosso cotidiano como uma prática que atenta contra a nossa cidadania e direitos humanos e civis, terrivelmente destrutiva e violenta, particularmente com as mulheres e com a juventude negra.”

“Apesar das tentativas de apagamento e da invisibilidade, a luta das mulheres negras sempre foi uma constante e é importante lançar luz sobre a sua História, que é uma História de liderança, protagonismo e de resistência, alcançados sempre com cooperações e solidariedades.”
Antonia Aparecida Quintão

Um projeto de vida

O projeto recentemente concluído pela professora Antonia Quintão envolveu organizações situadas na cidade de São Paulo, sendo a maior parte privadas e duas públicas de setores diversos: bancos, empresas de médio porte, multinacional e organização de ensino superior. A professora também entrevistou profissionais negras. “Quero destacar a importância de nós, mulheres negras, deixarmos de ser exclusivamente fonte primária de pesquisa para nos tornarmos sujeitos e protagonistas dos estudos que falam sobre nós”, salienta.

Há, de acordo com a professora, uma lacuna na literatura acadêmica sobre o racismo. “A reduzida bibliografia, principalmente de trabalhos acadêmicos que se valem da coleta e análise de narrativas de mulheres negras, demonstra também a urgência de se efetivar uma justa representatividade desse segmento social nas universidades, seja como discentes, docentes, pesquisadoras, gestoras, condizentes com o quadro da nossa formação étnico-racial”, justifica a docente. Em parceria com o professor Daniel Carvalho de Paula, a professora escreveu, há dois anos, o artigo intitulado Racismo Acadêmico: Apontamentos sobre a exclusão das docentes negras e negros das universidades brasileiras, onde evidenciam a lacuna que existe na literatura acadêmica sobre o racismo.

“Minha trajetória como acadêmica negra intersecciona todo o tempo com o racismo e a maneira como ele competentemente se estrutura no ambiente acadêmico, excluindo e silenciando as mulheres negras”.
Antonia Aparecida Quintão

Dessa forma, a professora Antonia Quintão considera que seu estudo é um “projeto de vida”. Ao falar de seu percurso acadêmico, ela lembra que sua formação foi na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), onde fez sua graduação, mestrado e doutorado, com inserção internacional, na época um grande diferencial, concluído em 1997. “Mas nada foi suficiente para superar o racismo”, destaca. “Enviei o meu currículo, sempre muito elogiado, para dezenas de faculdades. Sempre me chamavam para a entrevista, momento no qual o interesse desaparecia. Depois de permanecer um ano desempregada e acumulando dívidas excluí do meu currículo a minha titulação de mestre e de doutora e foi somente desta forma que consegui voltar a lecionar em uma escola particular de primeiro grau”, narra a docente. “Costumo dizer que esta foi a punição que recebi, por não ter permanecido no lugar que a sociedade brasileira, marcadamente racista e machista, tem reservado para as mulheres negras”, cita.

A pesquisadora lembra que seu primeiro projeto de pós-doutorado foi na área de comunicação, apresentado no ano de 1999, sendo muito elogiado pela professora supervisora e aprovado pelo departamento. “Mas eu precisava de uma bolsa para financiar a pesquisa e o meu pedido foi indeferido”, conta. Entre as justificativas, como ela destaca, constava que o “tema não se sustentava, porque não se podia observar o racismo, ao qual eu me referia no projeto proposto”.

Alguns anos depois, uma nova tentativa. Porém, mais uma vez seria necessário pleitear uma bolsa. “Fui então informada que podiam se candidatar apenas pesquisadores com doutorado concluído no máximo em cinco anos. Na ocasião, já tinha onze anos e tive que desistir do projeto. Finalmente, neste ano de 2023 e nesta terceira tentativa, consegui fechar esse longo processo iniciado em 1999 e concluído no dia 14 de fevereiro de 2023”, comemora.

Há décadas atuando como professora universitária, já fui convidada para participar de eventos em Núcleos de Estudos Africanos, sem africanos. Centro de estudos para a população negra, sem negros e muito menos negras!
Antonia Aparecida Quintão

Para a professora, esta é uma realidade inaceitável e injustificável em um País de maioria negra, mas ao mesmo tempo permanece silenciada, naturalizada e normalizada em espaços acadêmicos, que são ou deveriam ser, por excelência, espaços de contestação, reflexão crítica, debates, inconformismo e construção de novos paradigmas e novas abordagens condizentes com as demandas sociais. “Os três pilares da educação são: Ensino, Pesquisa e Extensão. Precisamos valorizar cada vez mais as atividades extensionistas, que exercem um papel estratégico fundamental para aproximar as universidades da sociedade e os estudantes da realidade social na qual atuarão profissionalmente.”

Geledés e continuidade

Considerando a sua formação como um processo constante, a professora Antonia Quintão atuou como coordenadora dos cursos de pós-graduação Lato Sensu na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde atualmente leciona e orienta pesquisas sobre Diversidade Racial nas Organizações. Ela também é a atual presidenta do Geledés – Instituto da Mulher Negra. “Foi fundamental para a minha formação e uma enorme alegria ter conhecido o Geledés, ainda nos anos 1990, e destaco aqui a importância da obra de Sueli Carneiro para a minha trajetória acadêmica”, cita, ressaltando que o Instituto tem realizado um trabalho extraordinário no enfrentamento ao racismo, as violações dos Direitos Humanos e civis e ainda no enfrentamento as desigualdades de oportunidades nas mais diversas áreas, entre elas, no mercado de trabalho. No Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, a professora é vice-presidente e responsável pela organização de palestras e eventos referentes à Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024/ONU-Resolução 68/237).

Além disso, ela vem liderando na FEA o que ela denomina “uma componente curricular”, oferecida como Estudos Complementares, aberta para todos os cursos da FEA e a outras unidades da USP. Essa oferta abrange também matrículas especiais abertas para pessoas graduadas. Ela considera esta atividade como uma continuidade de seu projeto de pesquisa. “Talvez seja a primeira componente curricular na graduação da FEA com a análise de raça, liderada por uma mulher negra. Portanto, acredito que estamos fazendo História”, comemora.

A responsabilidade formal e coordenação tem sido da professora Silvia Pereira de Castro Casa Nova, inspirada na componente curricular proposta pela professora Rebecca Ropers na pós-graduação, em 2013. Tem sido oferecida desde 2017, sempre por um time de docentes com intensa participação de outras pessoas-membro do Generas, o Núcleo FEA de Pesquisa e Extensão em Gênero, Raça e Sexualidade, e de bolsistas PUB, sempre construída colaborativamente, com a participação de especialistas convidadas.

Silvia Pereira de Castro Casa Nova – Foto: FEA

“Acredito que a minha presença na FEA permitiu que esse componente curricular abordasse explicita e fortemente a temática de raça. Nos outros oferecimentos, o foco em gênero e raça vinha como uma intersecção. Nesse, com a minha presença, as duas temáticas, gênero e raça, foram o foco principal dos encontros”, avalia a docente, destacando a colaboração fundamental do Geledés e das mulheres negras envolvidas nos seus projetos e iniciativas como Arielly Sousa, Natália Carneiro e Vilma Lassalette de Araújo Jorge.

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