A literatura afro-brasileira de autoria feminina: um estudo de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Resumo: O romance Úrsula, escrito por Maria Firmina dos Reis, em 1859, cerca de 29 anos antes da abolição da escravatura no Brasil, é o primeiro romance de temática abolicionista da literatura brasileira. O presente trabalho, realizado através de levantamento bibliográfico e análise crítico-interpretativa, realizada sob os auspícios da crítica literária de orientação feminista, tem como objetivo, fazer um resgate do romance Úrsula, apresentando a temática da obra e uma reflexão acerca da exclusão da voz e da escrita das mulheres brasileiras do século XIX dos cânones literários.

Palavras-chave: Literatura afro-brasileira; autoria feminina; Úrsula. 

Bárbara Loureiro Andreta – Universidade Federal de Santa Maria

Apresentação

Faz-se importante refletir acerca da exclusão da voz e da escrita de mulheres como Maria Firmina dos Reis dos cânones literários, bem como sobre sua representação no processo de constituição da nacionalidade, considerando-se as diferenças de gênero, raça e classe social. Segundo Rita Terezinha Schmidt (2000), o nacional constituiu-se como um domínio masculino, de forma direta e excludente, sendo a exclusão da representação da autoria feminina no século XIX, uma das formas de exercício do poder hegemônico de uma elite cultural, que atribuiu a si o direito de representar e significar a nação, conferindo-lhes validade universal. Assim, a visibilida- de e a circulação das obras de autoria feminina no campo acadêmico da construção de saberes não só afetam o estatuto da própria história cultural e literária, instalando na reflexão historiográfica interrogações acerca de premissas críticas e cristalizações canônicas, como também problematizam as representações dominantes calcadas no discurso assimilacionista de um sujeito nacional não marcado pela diferença, mas que, na prática, gerou as formas de exclusão de voz, presença e representação no processo de constituição da nacionalidade, do ponto de vista da diferença de gênero, raça e classe social (SCHMIDT, 2000).

Desta forma, o descrédito à literatura produzida por mulheres no passado é uma forma de controlar o campo literário a partir de um conceito de literatura que ratifica o aparato de saber/poder ligado às elites culturais – ou seja, a comunidade interpretativa de indivíduos que introjetaram o ponto de vista do gênero, da classe e da raça dominante – e que, portanto, está inserido no campo das relações de poder (SCHMIDT, 2006).

Percebe-se que as autoras negras do século XIX ainda são pouco estudadas na literatura nacional, assim como sua influência na literatura de autoria afrodescendente dos séculos XX e XXI. Este trabalho justifica-se pela importância de se resgatar a obra de Maria Firmina dos Reis, não ape

nas pelo seu pioneirismo no que diz respeito à questão da escravidão no Brasil, mas também pelo fato deste pioneirismo ter partido de uma mulher afrodescendente, e que vivia distante dos principais centros intelectuais de país. O presente trabalho, realizado através de levantamento bibliográfico e análise crítico-interpretativa, visa resgatar um pouco da trajetória literária da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1825 – 1917), que escreveu o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, Úrsula (1859).

A condição de colonialidade dos sujeitos que estão às margens, das minorias étnicas e raciais, das mulheres e dos homossexuais e até mesmo das nações emergentes começou a ter visibilidade, segundo Anselmo Peres Alós e Rita Terezinha Schmidt (2009), a partir do momento em que a teoria contemporânea começou a operar com conceitos como margi- nalidade, alteridade e diferença. Os autores entendem por colonialidade a permanência residual, através de ajustes e transformações, que permitem a reintegração dos sujeitos que estão às margens, bem como sua efetiva ação em um mundo em transformação.

Desta forma, considerando-se que Úrsula teve sua primeira publicação em 1859 e só voltou a ser estudada na década de 1970, a partir da publi- cação de sua edição fac-similar por Horácio de Almeida, é válido lembrar Schmidt (2008), quando esta afirma que a investigação de inclusões e exclu- sões históricas é uma forma de tornar visíveis as relações com a ideologia subjacentes às estruturas que definem a natureza do literário e a função da história literária como uma grande narrativa, que é gerada em função de escolhas políticas e não de escolhas desinteressadas ou neutras. O conteúdo e a estrutura estão imbricados em uma formação discursiva dominante, e seus efeitos ideológicos confirmam os sentidos e os lugares sociais em que esses são produzidos. A questão não é considerar as histórias literárias do ponto de vista de seus critérios de veracidade ou correspondência entre narrativas e eventos passados, mas de questionar sobre os conhecimentos que são gerados por seus constructos e a que interesses servem (SCHMIDT,  2008). Assim, a história literária é uma referência dos nexos de nacionalidade, visto que busca cristalizar o que se chama de “narrativização da memória” nos moldes de uma formação discursiva homogênea e uniformizadora. Esta funciona como um elemento de interpelação através da qual a identidade horizontal do sujeito nacional é constituída e protegida dos embates susci- tados pela diferença e pela alteridade (SCHMIDT, 2008).

 

A literatura afro-brasileira de autoria feminina: um estudo de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Fonte: Ao Pé da Letra

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