Crime e castigo para os homens extraordinários de vídeo da Copa da Rússia

Resumir uma mulher a sua genitália é coisa de quem tem certeza de sua posição enquanto ser especial

por Renata Izaal no O Globo

Torcedores brasileiros e costa-riquenhos assistem ao jogo em São Petersburgo durante a primeira fase da Copa. No Brasil, grupos organizados defendem a paz e o respeito em competições – Alexandre Cassiano / Agência O Globo

Rodion Romanovitch Raskólnikov, personagem central do clássico “Crime e castigo”, de Dostoiévski, tinha uma tese: na vida, existem pessoas ordinárias, condenadas a uma existência comum dentro das regras da sociedade, e extraordinárias, que transgridem as normas sociais sem sentir culpa nenhuma e, com sorte, realizam grandes feitos.

Os cinco brasileiros que assediam uma mulher russa no vídeo carregado de machismo, misoginia e racismo que roubou do futebol o protagonismo desta Copa certamente se julgam extraordinários.

E eles não estão sós. Fazem parte de uma parcela da elite brasileira — homens, brancos, heteronormativos e com recursos para acompanhar uma Copa do Mundo no exterior — que tem certeza do caráter extraordinário de sua existência. Seus grandes feitos não existem. Ao contrário, humilham, assediam, subjugam e dominam recorrendo a todo tipo de violência: simbólica, verbal e física. Um mínimo sentido de responsabilidade? Também não existe. Centrados em seus umbigos extraordinários, os “pais de família” recusam-se a entender o impacto de suas ações ou a se desculpar seriamente por elas. Basta dizer que foi tudo uma brincadeira feita sob o efeito do álcool. Eis o discurso da elite do atraso.

Em “Orientalismo”, marco inicial dos Estudos Pós-Coloniais, o teórico palestino Edward Said (1935-2003) analisa as ferramentas que foram necessárias para justificar a dominação colonial dos grandes impérios europeus sobre vastas áreas do Oriente. Resumidamente, da geografia à política, passando pela literatura e pelas artes plásticas, todo um discurso foi construído pela Europa de modo a afirmar sua superioridade em oposição à inferioridade quase infantil dos povos conquistados.

Mais antiga do que qualquer expansão imperialista, a dominação masculina ocorre da mesma maneira que a dominação colonial. As ideias de “sexo frágil” e do corpo feminino como um território passível de exploração — profundamente gravadas em nossas estruturas sociais — permitiram que as mulheres fossem colocadas, não sem reação, sob a tutela violenta do patriarcado.

MEDO DO ‘OUTRO’

No Brasil, cuja elite se esmera em reproduzir os mecanismos de controle dos países centrais, coronéis, empresários e políticos corruptos, senhores da casa grande e violadores de todos os tipos sempre consideraram o corpo feminino como disponível para o seu gozo — mais ou menos como os lordes na corte da rainha Vitória entendiam que as riquezas das colônias eram suas para explorar. Resumir, portanto, uma mulher a sua genitália, divertir-se com isso, e ainda tornar o ato público é coisa de quem tem certeza de sua posição enquanto ser extraordinário.

Mas tanto o machismo quanto o colonialismo escondem um fator: o medo do encontro com o “outro”, seja ele o Império Otomano às portas de Viena ou mulheres ocupando espaços além dos que lhe foram designados pelo patriarcado. A virilidade, escreveu o francês Pierre Bourdieu (1930-2002), “é construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino”.

O machismo tão claramente demonstrado no vídeo representa nada mais do que o medo profundo que essa elite — não custa repetir: branca, heteronormativa e com recursos financeiros e políticos — tem de perder poder e controle sobre o modus operandi da sociedade. Em outras palavras, de precisar assumir que, afinal, somos todos seres ordinários.

Em “Crime e castigo”, um atormentado Raskólnikov precisa lidar com seus medos, confessar seus crimes e pagar por eles. Seu fim aparentemente trágico é, na verdade, o começo de uma nova etapa. Tomara que a vida imite Dostoiévski.

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