Mulheres saíram às ruas em quatro capitais pelo direito de decidir
Por Júlia Dolce, do Brasil de Fato
No último mês, a luta pela descriminalização do aborto conquistou vitórias históricas em Argentina e Irlanda, e reacenderam a esperança de feministas e movimentos pelo direito à vida das mulheres ao redor do mundo. No Brasil, o debate sobre o direito das mulheres de tomar decisões plenas sobre o próprio corpo voltou a ganhar força nesta sexta-feira (22), com manifestações marcadas em diversos estados.
De acordo com a estudante Andreza Silva, uma das organizadoras do ato “É nossa hora de legalizar o aborto”, que aconteceu na capital paulista, a manifestação teve como objetivo ampliar o debate para uma audiência pública, sediada no STF e convocada pela ministra Rosa Weber, que acontecerá entre os dias 3 e 6 de agosto.
“Essa marcha acontece também para pressionar a audiência pública que acontecerá em agosto, com inspiração, principalmente, nas nossas companheiras argentinas, que conseguiram avançaram com a pauta do aborto no seu país”, afirmou.
Weber é relatora de uma ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ação apresenta o maior número de pedidos de ingresso como amicus curiae (espécie de consultor do processo) da história da corte. Segundo a ministra, o debate referente à interrupção voluntária da gravidez é “um dos temas jurídicos mais sensíveis e delicados” em pauta no país.
Uma morte a cada dois dias
Atualmente, 60% da população mundial vive em países que têm o aborto legalizado em todas ou algumas circunstâncias. No Brasil, a legislação permite o aborto apenas em três situações: no caso de gravidez decorrente de estupro, no caso de risco para a vida da mulher e no caso de fetos anencéfalos; além de prever, no artigo 124 do Código Penal, de um a três anos de prisão para a mulher que abortar em qualquer outra situação.
A restrição, no entanto, não limita a realização do procedimento. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 97% dos abortos clandestinos do mundo ocorrem em países em desenvolvimento; no Brasil, um milhão de abortos clandestinos são realizados todos os anos, e a cada dois dias uma mulher morre vítima de aborto inseguro.
A produtora cultural Amanda*, de 31 anos, sobreviveu a esta última estatística. Mãe de um menino de seis anos, ela descobriu que estava grávida novamente no ano passado, mas decidiu que não iria manter a gestação. Ela e o ex-companheiro pagaram R$ 4 mil a uma clínica particular e realizaram o procedimento de forma segura, mesmo que clandestinamente.
“Eu acho que não teria abortado se não tivesse condição de pagar, porque é muito perigoso. É muito triste que as mulheres tenham que passar por isso, de não ter essa referência, essa condição. Me atinge ver as mulheres sozinhas nessas situações, mulheres que não conseguiram abortar, por infinitas questões, morais, religiosas, financeiras. Ao mesmo tempo que a sociedade não permite o aborto, ela legaliza a maternidade solo, é culturalmente aceito que as mulheres cuidem das crianças sozinhas”, afirmou.
Desigualdade
A mesma preocupação é compartilhada por Shirlley Lopes, trabalhadora autônoma de 33 anos. Ela escolheu interromper a sua primeira gestação, há mais de dez anos, e hoje, mãe de uma menina de três anos, é militante pelo direito das mulheres decidirem sobre seus processos reprodutivos. Na época do aborto, ela recorreu ao método das pílulas abortivas, que são contrabandeadas no país, e destaca que, mesmo assim, considera-se privilegiada.
“A minha situação é, sem sombra de dúvida, muito diferente da de uma mulher negra, periférica, que não tem dinheiro para comprar o comprimido abortivo, e recorrem a métodos mais baratos. A pauta é aborto legal, seguro e gratuito, porque quem morre são as mulheres pobres, as mulheres de classe média e ricas tranquilamente abortam. Então o aborto no Brasil é mais uma maneira de criminalizar a pobreza, porque condenam a morte mulheres que não tem condição de pagar”.
Shirlley conta que, naquele momento, abortar foi a decisão mais “sábia” que poderia ter tido, e que seu ativismo pela descriminalização do aborto se tornou ainda maior após o nascimento de sua filha, ao vivenciar as dificuldades da maternidade em uma sociedade patriarcal.
“Eu não tinha noção de como é pesado ser mãe. Você vira um bicho afastado da sociedade, porque no nosso modelo social ninguém cuida da mulher mãe, os espaços não são feitos para mulheres com crianças pequenas. A maternidade revolucionou minha vida, eu chorei muito quando tive minha filha e tudo que eu pensava era ‘meu deus, se eu quis ter essa filha e estou sofrendo esse tanto, imagina se tivesse levado adiante a gestação que não queria’. Ninguém deve ser obrigado a ser mãe quando não quer ser”, defendeu.
*Nome alterado para preservar a identidade da entrevistada