O deputado Eduardo Cunha (PMDB) apresentou, nesta quarta-feira (21), um projeto de lei cujo objetivo é dificultar o acesso de vítimas de estupro a um aborto seguro. A matéria foi amplamente defendida pela bancada evangélica e aprovada na Comissão de Constituição e Justiça no Congresso. Enquanto isso, no Chile, mulheres lutam para ter o direito ao aborto seguro em caso de estupro. Lá a Constituição ainda é a mesma da ditadura militar de Augusto Pinochet.
Por Dayane Santos e Mariana Serafini, no Vermelho
Enquanto no Chile o debate é para ampliar direitos das mulheres e libertar o país dos resquícios da ditadura militar, no Brasil o Congresso conservador age de forma arbitrária para retirar as conquistas obtidas em decorrência de lutas históricas. Ao apresentar o projeto de lei, no início deste ano, a presidenta Michelle Bachelet argumentou que a dignidade das mulheres é um atributo inviolável e deve ser respeitada e protegida.
Já a decisão dos parlamentares que integram a comissão no Brasil, maioria homens e brancos, evidencia o quanto estão deslocados da realidade social brasileira, onde a maior parte da população é mulher e negra. Um estudo do Ipea mostra que, por ano, 527 mil pessoas sofrem tentativas ou casos consumados de estupro no Brasil, destas 89% são mulheres e 70% crianças e adolescentes. Do total, apenas 50 mil são registrados.
São muitos os motivos que levam uma mulher vítima de estupro preferir não registrar boletim de ocorrência contra o agressor, ou algumas vezes sequer revelar o crime para outras pessoas. O Hospital Pérola Byington, referência de atendimento de estupro em São Paulo, detectou que quando se trata do crime contra menores, 85% dos agressores são conhecidos e têm algum grau afetivo com a vítima. Em 21% dos casos o pai é o estuprador, padrastos são responsáveis por 16,7% das ocorrências; o tio é o agressor em 11,6%, o vizinho em 16,7% e conhecidos da família estão presentes em 21,7% dos casos.
A legislação brasileira tipifica o aborto como crime contra a vida e já prevê pena de prisão para dois envolvidos diretamente no aborto: a gestante e quem nela realizar as manobras abortivas. Apenas os casos de aborto necessário, se não há outro meio de salvar a vida da gestante, e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, são excluídos, o chamado de aborto legal.
No caso de estupro, momento de extrema fragilidade para a mulher, os parlamentares decidiram aprovar o projeto que dificulta ainda mais o acesso das vítimas ao direito de interromper a gravidez com segurança, uma vez que, para ser atendida, ela precisará ser submetida ao exame de corpo de delito e comunicação à autoridade policial, antes do procedimento. No caso de adolescentes e crianças, que obviamente não têm estrutura para levar uma gravidez adiante, os empecilhos serão os mesmos.
Atualmente, a mulher que é vítima de estupro não precisa de decisão judicial ou boletim de ocorrência confirmando o estupro ou de qualquer outro crime contra a dignidade sexual, ou seja, não há necessidade de autorização nem de uma sentença condenando o autor do crime sexual.
Portanto, a medida torna quase que impraticável o procedimento em razão da demora que isso pode causar, além do evidente constrangimento que a mulher, adolescente ou criança ficará exposta num momento como esse.
Hoje, a palavra da mulher que busca assistência médica por ter sido vítima de um crime sexual é o que tem a credibilidade, não a decisão de um delegado ou policial. Além disso, a prioridade é o atendimento médico e psicológico, o que se inverteria com a proposta aprovada.
Vale destacar ainda que o exame de corpo de delito pode e é muitas vezes elaborado pelo IML com base nas informações constantes do prontuário da vítima.
Além disso, a lei já prevê que se uma mulher gestante falta com a verdade e burla a lei para realizar um aborto, ela responde pelo crime de aborto previsto do artigo 124 do Código Penal.
Mas não para por aí, o projeto ainda prevê que o anúncio de meios ou métodos abortivos se torne crime, com agravamento de pena para profissionais de saúde, que podem chegar a ser detidos por um a três anos. Tal medida atinge diretamente os profissionais da área de saúde que, na prática, desobriga médicos e enfermeiros de informar às vítimas os seus direitos legais e os serviços disponíveis, conforme as normas da categoria.
Isso porque de acordo com o projeto, quem induzir, instigar ou ajudar a gestante ao aborto receberá pena de prisão de seis meses a dois anos. Além disso, o projeto prevê também que o profissional de saúde se recuse a fornecer ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo.
“Nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”, diz o texto da matéria. Ou seja, transfere a decisão de uma necessidade a uma profissional que, de acordo com as suas convicções pessoais, poderá impedir o atendimento à mulher.
O próprio relator do projeto, deputado Evandro Gussi (PV-SP), afirma que um farmacêutico, por exemplo, poderá deixar de fornecer pílula do dia seguinte, por exemplo, se considerar que isso viola a sua consciência.
“O projeto quer tratar é da liberdade de consciência. A consciência é inviolável. Não posso obrigar uma pessoa a ser coagida em relação a suas crenças”, disse.
Contra a maré
É como se o Brasil caminhasse no sentido contrário do país vizinho, e fosse em direção a uma legislação atrasada e excludente, como a implementada por Pinochet, no Chile, durante os anos 1980. Lá o aborto é proibido mesmo que seja espontâneo e a mulher pode ser presa, no caso de aborto intencional a pena aumenta. O Código Penal também obriga os profissionais de saúde a denunciarem a ocorrência.